Acredite no Que Quiser? por Eduardo Quirino

  • Um ensaio sobre a responsabilidade e moral de manter crenças e justificar seus ideais.

Normalmente pessoas que gostam de dizer o que as outras devem acreditar são tachadas de “mente fechada” por um lado e “autoritárias” por outro. Eu pretendo argumentar que essa visão é incorreta e que há uma carga ética em se sustentar crenças. 

Vamos começar com alguns experimentos mentais bem básicos para mostrar intuição por trás do texto: Imagine-se um alemão em 1930 conversando com um sujeito de bigode estranho num bar. O assunto vai indo, o homem parece um pouco tresloucado, mas ainda assim enfático e persuasivo no que diz. Quando o assunto chega em política ele fala de “raça pura ariana” e você, entendedor de biologia evolutiva e genética afirma que isso não existe. Não existem raças puras. Primeiro porque não existem raças e depois porque pureza genética é uma viagem completa, você continua dizendo que um povo geneticamente isolado se torna extremamente vulnerável à doenças e etc. Hitler provavelmente não se convenceu com seu papo sobre ciência, mas daí ele vai a outra mesa noutro dia e recebe as mesmas correções, e de novo, e de novo… 

Sobre o cenário acima, devo esclarecer algumas coisas. A genética ainda não era uma área muito bem consolidada na época de Hitler e as ideias sobre seleção natural e artificial encontravam muitos preconceitos entremeados a si. Mas o ponto não é esse. O ponto é que de uma crença falsa tida por alguém aleatório podem surgir reais catástrofes. No caso acima, te parece melhor que inúmeras pessoas deixem o senhor H acreditando no que quis ou que frequentemente rejeitassem o pensamento incrivelmente errôneo dele?   

Ok, o caso acima é obviamente exagerado. Provavelmente as crenças erradas do seu vizinho terraplanista não levarão ao holocausto. Porém isso não significa que há menos valor moral em tentar rejeitá-las.

A ideia geral que pretendo traçar é de que o sistema de crenças dos indivíduos justificam e licitam ações, portanto devemos cuidar com a manutenção dos nossos sistemas de crenças e, dentro do possível, do de outrem. 

Estamos vivendo num mundo mais e mais interconectado. Cada vez mais as ações de um indivíduo afetam diretamente outro. Cada vez mais, portanto, o erro de uma pessoa afeta a outra. Se assumimos, como parecemos, em geral, fazer, que nossas ações são feitas a partir de justificações, de razões para agir, devemos também aceitar que as razões para agir que temos afetam outras pessoas. 

A sociedade e as inter relações humanas são extremamente complexas, raramente podemos ter certeza dos impactos das nossa ações. Mesmo com o melhor embasamento podemos estar errados. Mas, obviamente, isso não é uma justificativa para nos permitirmos ter o pior embasamento.

Continuarei com os exemplos mentais para maiores elucidações. Parece claro que alguém que aceite (estupidamente!) que há uma superioridade masculina também aceite que possa mandar na sua mulher e que, caso ela não obedeça, ele pode inferir coerção sobre ela (coerção de qualquer tipo: física, econômica, psicológica, etc.), Isso porque assumimos acima que as justificativas para agir são relevantes para o comportamento final do indivíduo. Assim sendo, coerção é uma ação mediada por um sistema de crenças. Se alguém perguntar o porquê de se sustentar a crença de que “homens dão superiores”  talvez o idiota em questão responda algo como “pois são mais inteligentes”, “pois são mais fortes”, ou outras idiotices similares. Alguém que tivesse mostrado ao longo da vida desse sujeito que 1- não há diferença nas capacidades intelectuais entre homens e mulheres (vastamente provado ao longo da história e da literatura das ciências cognitivas) e que 2- força é algo muito pouco importante para a vida social contemporânea, poderia enfraquecer a importância das crenças do sujeito e assim permitir maior flexibilidade cognitiva nele. Com isso suas ações se tornariam menos drásticas e talvez houvesse uma real mudança no comportamento desse homem.

De tudo o que eu assumi acima para construir esse cenário, se segue uma defesa da importância das manifestações sociais e das lutas por direitos igualitários entre seres humanos. Pode-se ver isso facilmente, afinal, a luta social baseada na informação de indivíduos só se justifica se também se aceita que as justificativas para a ação possam mudar e influenciar o comportamento. Espero que isso seja suficiente para mostrar que minhas premissas não são nada diferentes de algo já muito aceito. Espero também ter mostrado de que forma estou relacionando crenças com ações. 

Agora vem a parte que suponho ser controversial. Crenças demonstradamente falsas estão espalhadas por ai. Crenças tais como “o bolsa-família só serviu para sustentar preguiçosos”, “vacinas causam autismo”, “meu signo implica minha personalidade”, “homeopatia funciona”, entre muitas outras, não se sustentam quando aplicados métodos de análise mais minuciosos do que a observação de primeira pessoa e evidenciação por boatos. No entanto, há inúmeros grupos que aceitam tais afirmações. Isso, eu pretendo mostrar, também é moralmente contestável simplesmente porque sustentar crenças demonstradamente falsas podem levar um indivíduo a agir com pior justificação e, assim, aumenta as chances de agir de modo equívoco. 

As consequências do equívoco pode tanto ser contra si quanto contra outros. Outras questões surgem também, uma vez que se acredita em algo apesar da falsidade perde-se interesse pela veracidade das coisas. Se, apesar de objeções sobre a funcionalidade ou existência de algo, se sustentam inalteradas as mesmas opiniões, as crenças se tornam dogmáticas. 

É comum também passarmos a aceitar as afirmações em base de “fazer sentido” e rejeitá-las em termos de “não fazer sentido”. Ambas as opções são problemáticas, começarei pela última: o mundo é muito mais complexo do que nossas ideias de senso comum são capazes de captar. A natureza dos fenômenos físicos, químicos, biológicos e sociais pode ser completamente avessa às nossas intuições, portanto, não fazer sentido é um critério muito fraco para dizer como as coisas não são. 

“Fazer sentido” é equivalentemente fraco no aspecto acima, mas traz mais alguns problemas. Podemos dizer que a noção de tempo absoluto, isso é, de que o tempo passa mesmo que tudo esteja completamente parado, faça sentido. No entanto, nossos GPS’s nunca funcionariam se não aceitássemos a concepção relativística de tempo. Fora desse exemplo da física, todas as pessoas que apoiaram torturadores, guerras e tragédias humanas, o fizeram achando que apoiar fazia sentido

Fazer sentido não diz muito sobre como as coisas são, tanto quanto “não fazer sentido” não implica como as coisas “não são”. Outro ponto, então, surge. O que faz sentido para nós muda drasticamente ao longo da vida. A noção de tempo relativístico passa a fazer sentido para quem estuda física. A noção de Papai Noel como causa para a existência de brinquedos e presentes passa a não fazer mais. Existem exemplos tristes relacionados à como a esfera do sentido pode ser habilmente manipulada. A cientologia tem a história da criação mais bizarra do universo. Ninguém em sã consciência acreditaria naquilo se ouvisse de primeira. Mas o que se faz é conquistar aos poucos, modificar aos poucos as noções de sentido das pessoas. Depois de sete anos, eles comeram rios de dinheiro e a pessoa iludida passou a acreditar que Zenu, o imperador galáctico, ordenou que multidões fossem exterminadas e as almas dessas multidões (os thetans) estão em nosso corpo.

Temos, então, dois problemas em não buscar justificações suficientes para nossas crenças: Dogmatismo e relativização irrazoável. O primeiro é problemático por fechar portas para qualquer diálogo e por justificar radicalismos. O segundo é problemático por aumentar a confusão social, as pessoas param de ligar suas ideias ao mundo e facilmente perdemos os critérios de veracidade para afirmações.  

Os critérios de veracidade são sumamente importantes também.O que faz sentido é relativizável, o que é verdade não. Verdade é frequentemente definida em termos de correspondência entre uma afirmação e o mundo. Se eu digo que o mundo é de uma forma que ele é, então eu digo a verdade. Obviamente que é quase impossível saber o que é verdade sobre um determinado fenômeno social, por exemplo. Mas isso não significa que tudo vale, essa dificuldade não justifica a crença de que racismo não existe, por exemplo. Não é porque é difícil saber o que é verdade que não haja algo que seja verdade. E mesmo sem saber o que é verdade, é possível saber o que não é. 

Muitas pessoas confundem duas coisas: verdade e justificação (se entendermos os termos como estou proponho) Verdade é uma correspondência entre uma afirmação e o mundo. Justificação é as razões que um indivíduo tem para acreditar na afirmação. Quando se afirma que “ele tem sua verdade” se quer dizer que “ele tem sua justificação” que é verdadeira ou falsa independentemente de ele acreditar ou não nisso. Há muitas pessoas que negam essa verdade a despeito da crença, mas não consegue-se sustentar isso. Uma razão teórica é que afirmar “não existe Verdade” é autocontraditório. Se não existe verdade, a afirmação “não existe Verdade” se torna imediatamente falsa. Outra questão é que existem fatos completamente externos às nossas crenças e conceptualizações que nos afetam indiferentemente de acreditarmos neles ou não e que negá-los é simplesmente irrelevante para sua realização. “Objetos de madeira soltos no ar vão cair” é um exemplo de crença que quem afirma “não existe verdade” está negando, mas que é verdade independente do que se quiser acreditar. “Existe desigualdade social” também é uma afirmação negada por quem rejeita a Verdade e que afeta a vida de todos acreditando nisso ou não. Portanto, aceitarei a existência de verdade.

Podemos aceitar que existe alguma afirmação que é verdadeira, e podemos dizer que não sabemos nem saberemos qual seria essa afirmação sobre um determinado assunto, no entanto, podemos ter afirmações mais bem justificadas, e afirmações que “descrevem melhor” como o mundo é, do que outras. Por exemplo: se alguém apontar para mim um celular e me pedir o que é aquilo, eu estarei mais próximo dizendo que é um MP3 do que afirmando que é um lápis. 

Há uma relação entre melhor justificação e melhor descrição. Podemos acertar uma descrição sobre o mundo por pura sorte. Chutando, por exemplo. Alguém pode dizer “é um celular” sem saber o que é um celular. Porém as chances disso ocorrer são bizarramente baixas. No entanto, quando temos informações auxiliares podemos rejeitar hipóteses e, assim, aumentar nossas chances de estarmos corretos a respeito de algo, justamente porque o mundo é finito e as formas como os objetos podem ser também é finita. Assim sendo, quando se rejeita uma opção nossa probabilidade de estar certo aumenta, tornando nossas descrições do mundo melhores.  

Temos agora um passo importante. Se aceitarmos que tendemos a agir de forma a otimizar nossos interesses, ou seja, reduzimos ações erradas, com “erro” significando apenas: não atingir nossos próprios interesses, então devemos aumentar nossa justificação para nossas crenças. A ideia é bem simples, dado o interesse que temos de realizar uma certa tarefa e nossas crenças a respeito de como o mundo é, bolamos um plano, uma estratégia para realizar nosso  interesse. Se nossas crenças descrevem bem o nosso mundo, então nosso plano será adequado e conseguiremos, se agirmos de acordo com ele, realizar nossos interesses. 

Disso se segue que, uma vez assumindo que se tenha interesses socialmente positivos, ou seja, bons para si e para os outros, crenças melhor justificadas tendem a produzir mais efeitos positivos, por meio de ações mais eficientes. Da mesma forma, crenças falsas podem nos levar a cometer erros e distanciar nossas ações dos interesses socialmente positivos, levando a danos aos outros e a si mesmo, com ou sem intenção. Tudo isso é meramente probabilístico, podemos acertar por sorte e errar por azar. Mas probabilidades são ferramentas muito importantes, e quando estão à seu favor, viver se torna muito mais fácil.  

Eu disse também que não devemos deixar de buscar essa aproximação entre nossas crenças e a Verdade, em nome de uma busca pelo que “faz sentido”, pois que isso é um critério fraco demais e mutável demais para garantir a melhor relação entre pessoas numa sociedade. 

Agora eu queria ir para um último ponto, sobre como certas crenças famosas podem nos levar a justificar ideias catastróficas. De novo, é mais um experimento de pensamento do que algo provável de acontecer, mesmo assim, há perigo em não buscar as melhores justificativas e isso basta para que se as busque. 

Argumento 1- 

1-A lua altera nosso comportamento devido a forças e energias que ela emana e devido à distância que se está dela.

2-A lua está a distâncias diferentes de pessoas geograficamente separadas.

3-Há comportamentos melhores que outros

4- Se a lua afeta o comportamento de todos de forma diferente devido à distância que se está dela e certos grupos estão a distâncias diferentes dela, então ela afeta de forma diferente o comportamento de pessoas geograficamente separadas

5- Se há comportamentos melhores que outros e a lua afeta diferentes comportamentos, a lua pode afetar comportamentos a serem melhores ou piores

Portanto, a lua pode justificar um povo ter comportamentos melhores que outros.

Um argumento muito similar foi usado dizendo que o Frio, e não a lua, tinha esse efeito. Esse argumento do determinismo geográfico foi usado diversas vezes para justificar o imperialismo europeu. Mas a astrologia já foi uma poderosa agente política e podia ter sido o caso de que essa crença sobre o poder da lua tivesse roubado a cena e justificado o imperialismo. 

Por outro lado, uma visão científica diria simplesmente: A lua não nos afeta de forma significativa para mudar nosso comportamento, no máximo permite que saiamos a noite quando ela está cheia. Sabemos que a gravidade não pode nos afetar, pois a nossa massa é tão pequena que mesmo multiplicada pela massa da lua e da constante gravitacional, quando dividimos esse total pela distância entre nós e a lua, ao quadrado, como manda a equação da gravitação universal, obtemos um número tão pequeno que não conseguiria nos mover nem um único centímetro. A lua poderia nos afetar de forma não gravitacional, é claro, nem magnética (nós não somos muito afetados por campos magnéticos, devido à nossa constituição carbônica). Mas a grande questão daí é, qual a relação entre a posição da lua e a sua influência? ela escolhe quais traços teremos? 

Há uma última coisa ainda que um cientista poderia dizer: vamos medir se isso é o caso. Basta pegarmos uma amostra de pessoas que nasceram sobre certa lua e buscar regularidades em suas vidas. Isso já foi feito com astrologia em geral e nenhuma correspondência estatisticamente relevante foi encontrada. 

Assim, o cientista contemporâneo negaria a primeira premissa do argumento e não teríamos justificativa para o fascismo lunar. 

A ciência já justificou todo o tipo de atrocidades, sem dúvida, no entanto a melhor ciência disponível hoje, é contra todas as formas de preconceito, ainda que nem todos os cientistas sejam minimamente progressistas, suas supostas posições de autoridade e seus preconceitos não encontram respaldos científicos. 

Argumento 2- 

1-Tudo que é natural é melhor que o que não o é

2-Morrer jovem é mais natural do que morrer com vários anos

3-Morrer jovem é melhor que morrer com vários anos.

Portanto, devemos retirar os remédios de pessoas acima de 35 anos.

Obviamente o erro está na primeira linha do argumento. Morrer comido por um urso é bem natural, mas é um fim horrível. A segunda premissa é verdadeira, a expectativa de vida da espécie humana aumentou apenas após o desenvolvimento da medicina e da farmacologia ocidental na metade do século XIX. Não dando mais remédios para idosos a expectativa de vida com certeza cairá. 

Creio serem estes dois exemplos suficientes para esboçar que certas premissas do senso comum PODEM levar a crenças muito estranhas e perigosas. Em épocas de governo baseado em senso comum, meus exemplos aqui são irrisórios perto do que nos aguarda.

Agora chegou a hora de propor o que eu considero a ação moralmente mais bem estabelecida no que tange nossas crenças. Se temos uma crença a respeito de como o mundo é, devemos buscar a melhor justificativa para mantê-la e, na falta disso ou sendo o caso de encontrarmos mais evidências para a negação da nossa crença, devemos mudar de crença. Essa justificação nem sempre pode ser científica, e pode variar muito de caso para caso, portanto uma conversa franca com pessoas que provavelmente discordarão de você é uma boa saída para ver as coisas de forma mais ampla. 

Quando notar alguém falando algo que você acredita ser mentira, há o dever de se discutir o tema para, ao menos, fazer o crente ter menos certeza do que diz. Não é possível convencer a todos, mas é possível reduzir o ímpeto de nossas crenças e através do ceticismo, nenhum grande mal ou grande bem podem ser obtidos. Apenas a certeza obstinada leva às extremas. 

Escrito e editado por Eduardo E. Quirino

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