por Lucian Chaussard
Sempre tive uma relação complicada com o FAM.
Passar dias inteiros no CIC batendo papo, vendo filmes ou simplesmente matando tempo nas cadeiras do teatro Ademir Rosa foram alguns dos momentos mais prazerosas que tive nos últimos anos. Momentos que me mostraram que a relação que se constrói com o cinema não se reduz a alguns nomes, filmes, discussões ou conceitos, mas que dependem de pessoas, lugares, sensações e tempos que estão fora da tela. Um importante aprendizado para uma postura extremista e arrogante comum da cinefilia.
Ao mesmo tempo o FAM sempre me irritou. Filmes ruins, discursos anacrônicos (a tal da identidade latinoamericana), programação hesitante. Características que se convertiam em um grande desperdício de oportunidade. Como cinéfilo, estudante de cinema e pessoa que necessita de atividades culturais em uma cidade que oferece tão poucos eventos, essas semanas de junho eram oportunidades preciosas que muitas vezes acabavam em frustração. Por isso, o FAM virou vidraça para minhas pedras cinéfilas e meu ímpeto adolescente.
Hoje estou do outro lado. Fui convidado pelo festival para fazer a seleção de vídeos da mostra Mercosul. O convite, acho, foi produto justamente desse ímpeto, quando fiz uma entrevista com Antônio Celso dos Santos, diretor do FAM. Nessa entrevista, o questionei-o diretamente – e talvez até duramente – sobre o perfil e a programação do festival. Por algum motivo Celso foi com a minha cara e cá estou.
Hesitei um pouco quando recebi o convite. Estaria traindo a causa, me vendendo, indo para o lado inimigo? Aceitei sem convicção, mas pensei comigo mesmo que esse trabalho poderia ser uma oportunidade, mesmo que muito limitada, de tentar fazer do festival um pouco como eu queria que ele fosse. Pensei também que esses revanchismos e oposições têm algo de bobo e que nuances devem ser consideradas. E não posso negar também o prazer de fazer parte da “cozinha” do evento, de ter alguma responsabilidade na definição do que vai chegar ao público, lugar que ocupei por muitos anos.
Assim, fiz parte do processo de seleção dos vídeos. Assisti a cerca de 60% dos vídeos inscritos, dei notas de 1 a 6, que provavelmente foram cruzadas com as notas de outros selecionadores. Não faço ideia do grau de influência da produção do festival no resultado final da programação, mas cruzar minhas escolhas e o resultado final me fez aprofundar algumas impressões que já tinha sobre o FAM.
Um aspecto que antes me parecia periférico e meramente técnico, mas que agora vejo muita importância é a completa falência da separação entre vídeo e película. Mesmo não tendo assistido ainda, aposto que muitos dos vídeos que estão na programação (e muitos dos que também não passaram) são de igual ou maior qualidade do que os curtas em 35mm que passarão no horário “nobre” do festival, e por isso visto por muito mais pessoas.
O principal argumento que mantém essa classificação, o da qualidade técnica, é descartável. Além de estarmos testemunhando a convergência total entre cinema e vídeo, o que coloca o nível técnico dos vídeos muito acima de alguns anos atrás, apareceram na seleção alguns vídeos com captura em película 16 ou 35mm. Vale lembrar também que um dos melhores curtas 35mm exibidos nos últimos anos no FAM, Noite de Sexta, Manhã de Sábado, de Kléber Mendonça Filho, foi um vídeo feito com uma câmera de 1CCD. Ou seja, mesmo tentando evitar, o FAM acaba por misturar cinema e vídeo. Vários festivais, tendo como o caso exemplar o da Mostra Tiradentes, não fazem mais a distinção entre vídeo e película e utilizam critérios estéticos e temáticos para definir sua programação. Creio que o FAM perde muito ao manter essa classificação e acaba refém de cineastas burocráticos que fazem carreira pelo caminho dos editais, deixando de lado propostas mais ousadas.
Por isso, lamento que poucas pessoas assistirão a filmes que entrariam em qualquer programação de qualidade. Cito três:
Bazurto, animales alimentos de hombres, um trabalho de conclusão da Universidad Nacional de Colombia, é um documentário que apenas pela maneira como a câmera flui por um mercado popular de comidas de Cartagena, consegue proporcionar momentos preciosos que formam uma teia entre a alimentação, a vida, a carne, os corpos, a espiritualidade e uma oposição entre o discurso religioso e a experiência telúrica. Exercício poderoso de mise-en-scène e muito estimulante por se tratar de um curta de escola.

La Nieve y Tantas Cosas, curta da Piedra Angular, produtora de recém formados da Universidad del Cine, de Buenos Aires, explora com elegância a partir de uma belíssima fotografia preto e branco a experiência da cinefilia, da paixão pelas imagens, de como há um movimento para a morte ou desaparecimento nesse tipo de paixão. O curta acompanha um sujeito que assiste ao mesmo filme na mesma sala de cinema várias vezes. O filme, homônimo do curta, é um melodrama argentino da década de 50, mas que na verdade pouco interessa ao protagonista. Seu foco de interesse está em uma figurante que aparece em poucos momentos da narrativa. Quando o filme deixa de ser exibido, o protagonista não sabe mais o que fazer. Presenciamos então um momento de delírio que me lembrou o gesto final do protagonista de A invenção de Morel, de Bioy Casares, que, para ficar para sempre com sua amada Faustine, morre tornando-se imagem. O título do curta é um verso do poema Elogio de la sombra, de Borges, nada mais propício para um filme que joga com as noções de momento definitivo, imagem, eternidade e que é assombrado pelo movimento de uma sombra e de um rosto secreto.
Já Último Retrato, filme do carioca Abelardo Carvalho é um documentário sobre Juca, um fotógrafo do interior de Minas Gerais da década de 30. Entretanto, podemos dizer que isso é apenas pro forma. O verdadeiro trabalho de Abelardo Carvalho não está em documentar, mas sim em preparar o espectador para a potência fantasmagórica e hipnótica das imagens fotografadas por Juca, que tocam o silêncio, o irrepresentável, o fim. Nada mais devo e consigo dizer.
Voltando aos aspectos, creio que outro tipo de classificação influenciou negativamente no resultado final da seleção: a que faz a separação entre ficção, documentário, experimental e animação. Nada contra essas categorias, não pretendo cair nos discursos já gastos dos limites movediços entre os gêneros. O que me incomoda é uma aparente tentativa de proporcionalidade, como se houvesse necessidade de haver um número mínimo de cada gênero. Vi isso como única justificativa para entraram filmes que considero fracos, como as animações El Pintor de Cielos, Imagine uma menina com cabelos de Brasil… e Os anjos do meio da praça, ou o documentário Itaúna-Manajé. Intepretação e Imaginário e a ficção com tons experimentais Darluz.
Tais escolhas de filmes revelam para mim, junto com os dois aspectos levantados (cinema versus vídeo, questão dos gêneros), a ausência do que deveria ser o principal norte de um festival: o próprio cinema. Sinto-me idiota comentando isso, mas me parece uma obviedade que um festival deveria ser o espaço de exibição de filmes que apresentam qualidade e ousadia na maneira como lidam com a forma do cinema (que podemos sintetizar na ideia de mise-en-scène) e em como essa forma se relaciona com um conteúdo que é o mundo.
Assim, não faz sentido para mim que diversos filmes razoáveis como Tanto, Pela Janela, Não, João!, Verão, Semivida, Crisálida, dentre outros, dessem lugar a filmes de menor qualidade por conta de critérios extrafílmicos. O caso que me pareceu mais complicado foi o do filme Perto de Casa, que dei nota máxima junto com Bazurto, La Nieve y Tantas Cosas e Último Retrato, mas que não foi selecionado.

Perto de Casa, vídeo do coletivo Teia, de Minas Gerais, é cru, agressivo e pouco estético. Realmente foge ao bom gosto comum em festivais. Mas essa crueza existe como a forma de um comportamento que o filme propõe se aproximar: a infância em toda sua selvageria. Um discurso um tanto dissonante em uma época que a caça à pedofilia ganha tons paranóicos. O filme começa com duas crianças, Ravi e Iel caminhando pela rua e depois discutindo sobre um biscoito que comem. A figura da pessoa por trás da câmera, Sérgio, é sempre reiterada pelas duas crianças. Essa primeira parte tem um tratamento de imagem saturado, gratuito, uma escolha que me pareceu verossímil se feita por uma criança que se depara com opções de montagem. Na segunda parte, eles chegam a um monte de areia, provavelmente material para alguma construção nas redondezas. O efeito tosco de imagem não existe mais e as crianças começam a brincar no barranco. Alguns palavrões são falados, alguma agressividade transparece nas brincadeiras. De repente, Iel, com os olhos vidrados, se dirige a Sérgio e pergunta se pode ficar pelado. Ele concorda. Iel tira a roupa e volta a brincar. As brincadeiras se concentram em jogar areia um no cu do outro, como eles mesmos dizem, assim como menções ao pinto de Iel, à gravidez, à polícia. Eles ficam eufóricos. De repente passa um carro e Iel se esconde. Em alguns momentos Sérgio não sabe se intervém. Mesmo assim a sexualidade das crianças é exercida com uma naturalidade brutal e o filme termina com Ravi (literalmente) puxando o saco de Iel. Tal opção por um registro pouco estetizado e contaminado de fluxo cotidiano (um mero passeio perto de casa) revela a qualidade conceitual de um filme muito simples e ousado, atento ao seu objeto e às questões do corpo e da infância que parecem brotar da banalidade.
Não faço ideia se as questões que levantei são produto das escolhas de quem organiza o festival ou se há algo de acaso. Mesmo assim, a sensação que me fica é que não consegui realizar meu desejo de fazer do FAM um pouquinho do que eu gostaria que fosse. No fim, acho que só me resta a resignação. Bem… que venha mais um FAM.
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Belo texto! Parabéns pelos pitacos e por expressar tão bem o que eu também sinto quanto a boa parte dos festivais de cinema desse brasilzão de meu deus!
Concordo com todas as sensações sobre o FAM. Em cinco anos de curso de Cinema nunca havia realmente conseguido ir ao FAM de coração aberto. Esse ano o fiz. E a palavra que fica é “resignação”. Sempre me intriguei com a “seleção” do FAM, e vejo cada vez mais depoimentos (velados, na maioria) dos selecionadores no mesmo sentido que o seu. Será que essa comissão de selecionadores é só fachada? Mas, enfim, ele vai continuar assim (fórmula que “funciona” desde 1997 como o próprio organizador diz), e nós vamos continuar resignados.