- Uma contra-crítica, em resposta ao texto de Malcom Numei, discutindo violência em It – Capítulo 3
Eu, infelizmente, não possuo erudição artística para fazer uma análise baseada nos méritos fílmicos. Por essa razão analisarei tanto quanto puder alguns recursos narrativos do filme Coringa do Todd Phillips em termos psicologizantes e literários. Feita essa ressalva, vamos ao que me proponho. A ideia geral será interpretar o filme contra a acusação de que ele incentiva a violência. Além disso, tentarei apontar certas características e implicações que poderíamos extrair de certas cenas. Aliás, daqui pra frente, tudo é spoiler.
A violência mais substancial do filme é apontada em poucas cenas: a primeira quando Arthur apanha dos garotos na rua, depois quando ele apanha e revida cometendo três assassinatos. Novamente na cena em que ocorre a asfixia de Penny Fleck, o assassinato brutal de Randall, o espancamento dos detetives e, por fim, o assassinato de Murray ao vivo. O argumento de quem defende (como meu co-editor*) que o filme glorifica a vingança social sanguinária se justificaria porque i) todas as mortes no filme são mostradas juntamentecom sua justificação e ii) há uma catarse explícita após essas mortes. A justificativa para o ponto dois é a intensidade emocional de libertação que a dança da morte do Coringa, aprofundada pela música “that’s life” e a brilhante trilha sonora, atribuem às mortes. O principal exemplo se daria na cena da escadaria, logo após a mais assustadora morte no filme. Quanto a esse ponto retornaremos depois, precisamos analisar o personagem e o primeiro ponto antes.
A primeira cena de violência introduz qual o sentimento que devemos ter pelo personagem aquela altura da narrativa: pena, compaixão. O espancamento brutal e sem sentido, a expressão dolorosa das risadas involuntárias que acometem a personagem na terapia, as tentativas frustradas de fazer parte da sociedade exemplificadas pela cena no ônibus. O primeiro assassinato foi construído para que a personalidade de Arthur não salte etapas, é um filme de construção psicológica, afinal. Ele estava justificado como mocinho tradicional, oitentista, caso não fosse magro e incapaz de se defender esperaríamos que ele intercedesse pela moça no metrô. Ele não o faz. Os recém estabelecidos crápulas vem para o ataque, com desdém e deboche. Somos convidados a odiá-los não só pela agressão machista e pela violência covarde, eles também nos mostram uma falta de compaixão profunda. Ninguém se surpreende, nem muda o julgamento que têm sobre Arthur pelo triplo homicídio. O filme nos disse: eles mereciam, não? e nós assentimos. Há uma diferença sutil na forma como o protagonista lida com os três, porém. Os dois primeiros morrem rapidamente, era uma defesa direta da própria vida, um tiro para cada, e fim. Já o terceiro, ferido, incapaz, perseguido, morto no segundo tiro. A adrenalina toma conta e as costas do crápula se torna destino final de todo o resto da munição. A violência aumentou ligeiramente, houve mais que defesa. No entanto, o filme justificou essas mortes.
Sigamos para a próxima vítima do vilão-herói: Penny Fleck, sua mãe adotiva. Nessa cena, que marca uma virada fundamental, temos a fala “você disse que essas risadas são uma doença, na verdade elas são quem eu sou” {estou citando de memória, então pode haver erros}, “Eu não fui F(f)eliz nem um único segundo da minha vida” e uma última fala completa a construção final do personagem, na minha nunca tão humilde opinião, a já icônica: “eu costumava achar que minha vida é uma tragédia, mas agora percebi que é uma porra de uma comédia”. Tendo retomado essas, conseguimos os elementos textuais para analisar algumas coisas sobre a morte brutal de Penny.
Arthur é um criança especialmente desafortunada. Sua mãe adotiva era doente e seu padrasto era um ser execrável. Esse início lhe causou danos irreparáveis, Penny não lhe ajudou, senão, o destruiu. Muitos com quem conversei sugerem que ele a matou por vingança e essa era a justificativa dele. Vingança por sua condição infeliz. No entanto, isso seria inconsistente com as outras duas falas. Só vinga-se de algo que se vê como ruim, e ele acabou de dizer que estava reinterpretando sua vida. Era uma comédia, e as risadas são parte dele. Se ele assim passou às entender, nada há do que se vingar. O que explicaria o matricídio, então?
Na minha visão, existem Happy (Feliz), Arthur e Coringa co-habitando um mesmo corpo. O primeiro é sua personalidade frente sua mãe, uma criança que “veio ao mundo para trazer alegria e riso à todos”, Happy é quem Arthur gostaria de ser. Há Arthur, comprimido entre os dois outros, é ele quem escreve as piadas auto-depreciativas e quem se sente mal o tempo todo, é ele quem se enforca para parar de rir é ele quem deseja ser visto por Murray como um filho digno. É ele quem ri de forma estridente de piadas para tentar se enquadrar nos lugares. Por fim há o Coringa, a personalidade que acha graça na vida terrível que Arthur tentou suportar e, mais que isso, acha graça da tentativa das pessoas suportarem essa vida, é a raiva contida que se extravasa através de golpes fortes em objetos inanimados ou com balas nas costas de um engravatado. Coringa assume o posto após a morte de Penny. Quando Arthur a mata, ele o faz para se livrar de Happy e aceitar sua vida como uma comédia. Ele foi a vida inteira Arthur e, portanto, alguém miserável. Ele nunca foi Feliz nem feliz e naquele ponto, tendo perdido seu vínculo materno ao descobrir que foi abandonado à violência por aquela que diz amá-lo, se permitiu ser o Coringa o sentimento de comicidade ante a tragédia e os “pensamentos negativos” levavam Arthur a uma risada desagradável, incontrolável até se aceitar e na última cena essa risada era de verdadeiro humor. Arthur se desfez em Coringa através do uso de um travesseiro.
Aqui, temos a transição. Fomos cativados a ter pena de Arthur, agora veremos Coringa romper com nossa boa vontade. A morte de Randall é a ruptura mais clara. Ele traiu o pobre Arthur, é claro. Mas a forma como ele morre, a frieza cruel, o excesso de golpes que perfaz a execução e, principalmente, a pouca importância para o fato de se estar coberto do sangue de alguém causam o senso de medo e tensão que Gary representa, mas que a audiência sente. Coringa nos assusta para além do ponto de retorno. Ele dança divertido. Na sua cabeça, a música toca e o mundo o aplaude. Na vida real, ele está sozinho numa escadaria e seus apoiadores, nós que assistimos, estamos angustiados e perturbados.
A cena da perseguição dos detetives constrói rapidamente quem será a personagem nos filmes seguintes. Ele rouba um homem no metrô, toma um golpe e esbarra noutro, indicando que a culpa era do primeiro, faz com que eles briguem. Inicia a confusão total e foge, some entre a desgraça e a confusão. Ele conhece a raiva, o desespero e a fúria assassina e irá usá-la para desestabilizar Gotham, afinal acreditar na ordem é a maior piada.
A morte de Murray é morte menos justificada de todas. Murray riu e queria zombar dele ao vivo. Isso é espúrio, sem dúvida. Doloroso, acertadamente, no entanto uma fraquíssima justificativa para um assassinato. O Coringa foi introduzido para o mundo, a cidade estava em caos e ele que o causou.
Chegamos na hora de responder às acusações iniciais. Todas as mortes foram justificadas? não. O filme parece fazer com que sejam? O filme faz do assassinato algo a se glorificar? mais ou menos. Ele com certeza faz com que acreditemos que o Coringa assim pensa. Afinal a única cena que não acompanha o vilão é a do assassinato de Thomas e Martha (“Batman vs Superman” cravou esse nome na minha cabeça) Wayne. Acho que a vontade do filme de nos aproximar de Arthur para simpatizar com ele e nos afastar de Coringa para não nos imunizarmos quanto aos terrores da violência funciona se, você, como eu, mal conseguiu rir (de nervoso) da piada após a morte de Randall de tão brutal e intensa que foi tal execução. Isso é uma aposta perigosa, pois pessoas que estariam dispostas a se inspirar pelo filme e ir atrás de derrubar o sistema com uma arma, provavelmente não têm um apreço muito grande pelas outras pessoas, nem a melhor da empatias. A catarse é justificada no filme pelo fato de ele seguir o ponto de vista do protagonista. Ela é uma apologia à morte e a subversão? não mais do que o filme do Rambo é uma apologia à matar criminosos.
A grande questão é que não há clara sugestão entre violência gráfica e cinematográfica e violência de fato, como o caso dos videogames violentos nos diz. Afinal, quem critica “Coringa” e não vê problemas com GTA está numa posição desagradável de explicar como um é mais efetivo que o outro em aumentar a criminalidade. A questão é que ao se introduzir Arthur como um ser gentil que será corrompido pela hostilidade a sua volta o filme se prepara para nos apresentar um conflito importante entre estabilidade, justiça e segurança. Para concluir essa parte do texto, acho que o recurso narrativo explica as decisões cinematográficas tomadas. O vilão fazer coisas ruins é o esperado mesmo. Por outro lado, temos sim certa glorificação que não é facilmente desfeita numa olhada rápida.
Agora vou rapidamente apontar coisas interessantes que o filme parece trazer à tona no que tange à crítica social. Lembremos como estava Gotham durante o filme: havia pilhas de lixo destruindo a estrutura comercial, o governo estava sem dinheiro para manter assistência social e o desemprego estava estourando. A máquina pública estava falida em todos os sentidos. Thomas Wayne, considerando se candidatar a prefeito, constantemente lembrava a todos o quanto havia discrepância social na cidade. Os funcionário da Wayne Enterprises são mortos por um palhaço, ricos se mostram vulneráveis em rede pública. O desespero, a aversão, a percepção de injustiça rompem a resignação e começam os motins. O Coringa, como agente originário desses motins ganha sua visibilidade tão sonhada. O caos glorifica seu criador. Thomas Wayne representa um sistema injusto e auto governado para manter a injustiça, Thomas Wayne representa também um sistema outrora estável que lentamente ruiu e agora encara seu ponto crítico. Esse sistema produziu o Coringa, seu maior inimigo. Ele produziu o desprezo pela ordem e pela paz que só surge quando a estabilidade promove mais a morte e a ruína do que a incerteza.
Disso podemos extrair a seguinte lição, talvez um argumento, que encerra o texto. A injustiça social, se levada a pontos críticos, faz a paz ruir. A criminalidade subirá e nem os mais ricos e poderosos estão a salvos do caos. Isso não é desejável, pois o caos não é,assim como a ordem, justo, ao contrário do que quis o Coringa de Nolan. Nele, áreas nobres estão mais protegidas e mais afastadas em termos de probabilidade, do que as mais pobres. Há ainda assim sentidos muito importantes nos quais o caos pode afetar quaisquer pessoas. Basta que revoltosos acabem com as fontes de alimentos, intoxiquem a água, invadam hospitais ou tramem assassinatos. Os interesses dos ricos são tão de acordo, em última instância, com os da coesão social, e assim, com os da justiça social quanto os que mais diretamente sofrem. Há uma segunda forma de se analisar isso. Seguindo do princípio que se deseja maximizar a liberdade e que não se deseja ser agredido, podemos supor que num ambiente cuja coesão social é crítica devido à desigualdade, temos diversos indivíduos compelidos a romper normas e cometer crimes, esses crimes se organizam por diversos motivos em locais e horários específicos. Isso leva a existência de elementos coercitivos que impedem pessoas de frequentarem certos lugares em certos horários por temor por sua vida ou propriedade, diminuindo a liberdade dos cidadãos. A morte de Thomas Wayne representa os dois cenários e creio que ela ilustra que se quisermos aumentar a liberdade, se queremos segurança e estabilidade precisamos garantir que a desigualdade seja reduzida, evitando a necessidade ou a estetização da criminalidade. O palhaço não deve ser glorificado, ele deve ser ouvido como motivação para a correção do rumo progressivo da injustiça. A morte de Thomas Wayne é tanto sua própria culpa quanto do Coringa e do atirador, mas não na mesma proporção. Os mais favorecidos não deveriam, mesmo que por puro egoísmo, ir contra a assistência social.
*Nota do co-editor: minha opinião vai de encontro com os pontos levantado por Malcom, na outra crítica publicada no site.