Fragmentos da memória e do tempo

Mônica Pereira Juergens Age[1]

A memória nos fornece lembranças, imagens de outros tempos que ficam gravadas em cada um de nós, sobrepostas e misturadas. Fornece-nos uma imagem daquele que se lembra, mas também de outras de outros tempos, que podem ser relacionadas em um relato arqueológico. São camadas do tempo, como uma estratigrafia de registros, que ficam acumuladas em cada indivíduo. Os mecanismos da memória estão diretamente ligados ao armazenamento de informações, uma espécie de inventário pessoal ou coletivo. Camada por camada, imagem por imagem, registramos nossas lembranças em nossa memória, são como fragmentos arqueológicos. Os artistas contemporâneos costumam rearranjar e reformular esses recursos em seus trabalhos, deslocando uma realidade para outra, utilizando objetos que são uma espécie de símbolo da memória e misturando tempos. Para Walter Benjamin,

A língua tem indicado inequivocadamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades são soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalha-lo como se espalha a terra, revolve-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação.[2]

Paulo Gaiad é o próprio homem que escava, ele revolve seu passado e busca em suas lembranças que são matéria para seu fazer artístico. Os artistas, assim como os arqueólogos, não estudam apenas a camada encontrada, mas as camadas que originaram aquele achado. Existe uma espécie de ponto de convergência de todas as informações encontradas, e a partir desse ponto podemos tomar vários caminhos de leituras da obra, como em uma escavação arqueológica.

Gaiad recorre à memória como dispositivo, um jogo constante de lembrar e esquecer. A memória do artista é acionada por mecanismos que ele utiliza com a possível finalidade de capturar quem observa seus trabalhos, lembranças que pertenciam ao passado, que retornam como uma forma de evitar o esquecimento. O dispositivo nos faz ter acesso à obra de um artista, é a sua marca, uma diferença e singularidade, são redes de relações que criadas pelo artista. Para Agamben[3] “dispositivo, [é] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” As séries de Paulo Gaiad são pedaços, contam a sua história, momentos que deixaram marcas na vida do artista, são os restos de uma escavação inicialmente desorganizados, mas que o artista estabelece numa ordem própria. São relacionadas, formam um conjunto, mostrando seu gesto que sempre retorna. Em suas obras nos identificamos com o detalhe, o rastro, nos deixamos capturar por suas lembranças que se transformam em nossas. O peso de seu passado e de histórias já vividas pode ser traduzido no peso do material que utiliza: ferro, cimento, madeira e chumbo.

Raspar, perfurar, amarrar, rasgar, sobrepor, desorganizar, as obras de Paulo Gaiad são superfícies carregadas de memória, ele mistura imagens e técnicas, utiliza a foto e a pintura, a foto e o texto. Seus trabalhos iniciais nos levam a mergulhar profundamente em sua intimidade, vivências inicialmente pessoais e transformadas em obra de arte, são trabalhos que se relacionam com sua família, suas viagens e com o local que o artista vive.

Na Série Auto-retratos, as fotografias ganham novos significados, servem como metáforas. São como rastros, algo que foi e não existe mais, mas que ficam gravados na superfície das chapas de metal. Nesta mesma série, Gaiad continua com o tema memória, mas não a sua, fala a mesma coisa, mas de outra forma. Pede para pessoas que conhece lhe enviarem imagens que representem seus autorretratos, situações, pessoas ou objetos significativos em suas vidas, e essas imagens são interpretadas e trabalhadas pelo artista. Recebidas as imagens, busca o “ponto sensível” das vidas dessas pessoas (Figura 1).

Figura 1 – Paulo Gaiad. A vida como eu gosto, auto-retrato de André Gaiad, 2001. Técnica mista. 6 peças de 20 x 20 cm.

As fotografias são vistas de maneira diferente, isso está relacionado à busca de identidade, à procura da relação entre quem observa e a imagem. Paulo Gaiad repete o tema, repete a imagem, ele as reproduz inúmeras vezes. Não utiliza as imagens originais, produz cópias. Nessa série, o objeto comum é a superfície na qual as imagens são coladas, são chapas de ferro na dimensão 20 X 20 cm e são organizadas de acordo com a história que o artista conta.

Paulo Gaiad utiliza constantemente fotografias e imagens selecionadas digitalmente, são objetos símbolo da memória que contam uma história, a sua e a do outro. A fotografia pode ser considerada uma arte da memória, uma vez que nossa memória é constituída por imagens. As imagens captadas pela câmera fotográfica ficam registradas, são rastros de luz gravados em um filme ou como na contemporaneidade, em um cartão de memória. Apropria-se de situações do passado que interferem no presente, mistura, desloca e sobrepõe tempos. Para Philippe Dubois, em O ato Fotográfico,[4] considerando todas as artes da imagem, a fotografia é aquela que melhor representa essa ideia de tempos deslocados, pois está mais próxima possível do objeto, através da impressão luminosa no filme, e ao mesmo tempo distante, existindo em um espaço de tempo[5] no qual a imagem ainda não foi revelada e a espera para a contemplação real da mesma. A fotografia exige um duplo distanciamento, o distanciamento do tempo em que foi tirada a foto, pois a foto sempre representa o passado, e o distanciamento para observar a foto enquanto objeto. Esses tempos na obra de Gaiad não dizem respeito apenas ao momento da foto, mas também ao tempo da obra; quando ele utiliza metal para colar as imagens, muitas vezes elas sofrem com o desgaste, com a ferrugem que representa essa passagem do tempo.

Paulo Gaiad não está interessado na fotografia, mesmo olhando com o olhar fotográfico o que ele procura é a carga afetiva daquela imagem. Retira pedaços da fotografia, ressignifica, refaz a foto, procura detalhes. Trabalha a fotografia como um objeto, não apenas como uma imagem. Para Flávio de Carvalho,

Um exame dos objetos do mundo e das coisas encontradas no correr da vida, não somente desperta uma nova sensibilidade no indivíduo e que antes se achava adormecida, mas também esclarece uma ligação anímica maior entre o indivíduo e o objeto examinado, o objeto adquire para o indivíduo um valor e uma sugestibilidade que ele antes não possuía, o objeto torna-se uma fonte de recordação das dúvidas e do drama da vida, o objeto vive tanto quanto o próprio indivíduo.[6]

Vale ainda ressaltar que, segundo Flavio de Carvalho, a atmosfera de um objeto são as recordações e as memórias que o próprio objeto oferece ao observador. Essas imagens sugerem uma recordação contínua, um efeito de rememoração que é identificado facilmente por quem está diante desses objetos. A fotografia não é apenas uma imagem, ela é uma impressão sobre um objeto tridimensional, que é o papel. Quando manuseamos uma fotografia, temos um objeto que possui volume e passamos por uma experiência física. Na obra “Questão de escolha”, da série Auto-retratos, Paulo Gaiad trabalha essa característica misturando a foto ou a imagem com outros objetos como linha e arame (Figura 2), ou quando ele arranha a superfície na qual a imagem foi colada ou sobreposta. Para criar essa narrativa, ele precisa conhecer quem será retratado, assim faz sua interpretação e a coloca na obra. Paulo Gaiad recorre a memória do outro, trabalha essa memória, ressignifica-a e a devolve, transformando-a em uma memória coletiva.

Figura 2 – Paulo Gaiad. Questão de escolha, auto-retrato de Angela Célia K., 2001. Técnica mista. 3 peças de 20 x 20 cm.

O artista utiliza fotos produzidas por ele e imagens que encontra no computador – em algumas ele não é fotografo, mas o realizador da imagem, como propõe Derrida,[7] aquele que permite que uma imagem, ou uma imagem de imagem, passe do real à realidade, do inconsciente para a consciência, que seja trazida para a luz. Manipula as imagens, amplia, busca na macrofotografia, no detalhe, o que pretende utilizar para compor seus trabalhos. Procura o que punge, o que fere e marca, escolhe os acontecimentos mais significativos de sua vida e os expõe, transforma sua memória pessoal em coletiva. Com Barthes, podemos dizer que Gaiad busca o sentimento na fotografia, aprofunda-se naquela imagem não pelo tema, mas como uma ferida, algo que marca – “vejo, sinto, portanto noto, olho e penso”[8]. São marcas de seu passado, que apenas o artista consegue ver e que ao invés de trabalhar mentalmente, transporta para a superfície.

Existe uma palavra em latim para designar essa ferida, essa picada, essa marca feira por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também a idéia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis, essas marcas, essas feridas que são precisamente pontos. Punctum também é picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte.[9]

Na obra “Photographia” (Figura 3), o nome sugere uma escrita com a imagem com o nome da obra, uma narrativa que o artista construiu a partir das imagens que recebeu. Para cada imagem ou conjunto de imagens recebidas, uma nova história foi contada. Utilizando o dispositivo, ele cria essa rede de relações entre a imagem, palavra, memória, sensação.

Figura 3 – Paulo Gaiad, Série Auto-retratos. Photographia, auto-retrato de Ruth Klotzel, 2001. Técnica mista.  4 peças de 20 x 20 cm.

A câmara fotográfica tirou a foto, registrou algo que não será reproduzido jamais, a não ser mecanicamente com a reprodução da mesma foto. Essa repetição pode ser uma incessante busca para reviver aquele momento, quando o artista fala de sua própria vida. Para Walter Benjamin,

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, no lugar em que ela se desdobra a história à qual ela estava submetida no curso de sua existência. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as cambiantes relações de propriedade em que ela ingressou.[10]

Na impressão no filme, a foto é o registro físico de algo, de um instante em um determinado tempo, um traço, uma marca, um rastro. Tanto o rastro quanto a fotografia e a memória possuem uma relação com a formação de arquivos. O arquivo é formado a partir de uma seleção de rastros, portanto, o arquivo começa ali onde o rastro se organiza, supondo que o rastro é sempre finito (Derrida). O rastro é a própria memória.

No arquivo também temos uma mistura de temporalidades, assim como na fotografia – e no trabalho de Paulo Gaiad. Para Derrida[11], o arquivo não é uma questão de passado, é uma questão de futuro, trata do futuro. Seleciono o que é preciso que se repita, que se guarde para o futuro. Assim também são a nossa memória e as imagens que guardamos. Guardamos o que para nós possui um significado, um sentido e que está na ordem do sensível, guardamos o que não queremos esquecer.

É próprio do traço poder ser apagado, perdido, esquecido, destruído. É a sua finitude. E é porque é próprio do traço ser finito que há arquivo, isto é, que se fazem esforços para selecionar, para guardar, para destruir tais arquivos ou deixar morrerem tais rastros, para deixar desaparecerem tais rastros e guardar tais outros, porque sabemos que os rastros são finitos. E um arquivo é sempre finito, sempre destrutível. Quaisquer que sejam os progressos que se possa fazer quanto à estocagem e a conservação de arquivos, sabemos que é próprio de todo arquivo poder ser destruído. Não há arquivos indestrutíveis, isso não existe, isso não pode existir.[12]

As informações que constituem memórias são adquiridas através de sensações, apreendidas pelos sentidos em forma de experiências. As experiências vividas são pessoais e sentidas de forma diferenciada pelos indivíduos. Na série Auto-retratos, Gaiad transforma rastros de experiências das pessoas que mandaram as imagens em algo seu. As experiências, para Derrida, não existem sem rastro, tudo é rastro, e o rastro não é apresentado apenas fisicamente com uma escrita no papel. “Há vestígio, retenção, protensão e, portanto, relação com algo outro, com o outro, ou com outro momento, outro lugar, remissão ao outro há rastro”.[13] Paulo Gaiad fala da memória, mas também do arquivo, da pulsão de arquivo.

Tudo tem relação com as sensações e a memória, são rastos de outros tempos. Esses mecanismos da memória podem ser comparados a um arquivo. No arquivo fazemos uma seleção do que queremos guardar e destruir ou apagar, porque se guardássemos tudo não  teríamos um arquivo, que é uma estratégia de registro contra o esquecimento, o apagamento e a morte da memória. O arquivo é formado a partir de uma seleção de rastros, portanto o arquivo começa ali onde o rastro se organiza supondo que o rastro é sempre finito. “A pulsão de arquivo é um momento irresistível não apenas para guardar os rastros, mas também para dominar os rastros, para interpretá-los”.[14]

Para Walter Benjamin, a história é objeto de uma construção cujo lugar é um tempo impregnado de agoras, pelos quais cada presente comunica-se com os diversos passados, fatos e lugares. O tempo não é homogêneo, mas sim constituído de vários tempos, assim como as obras de Paulo Gaiad e sua estratigrafia embaralhada. Suas obras são formadas por pedaços de vários tempos.

Na arte contemporânea, evocar a memória nos coloca em um tempo fora de tempo, nos propõe um ir e vir constante trazendo o passado para o presente. Em suas obras, Gaiad transporta o observador para suas memórias, rastros de seu passado, e para suas lembranças que aparecem materializadas e transformadas em obra de arte. A obra de arte pode ser um dispositivo, pois possui uma potência e uma linguagem próprias; para Agamben, a linguagem talvez seja o mais antigo dos dispositivos. O artista utiliza o detalhe, amplia o acontecimento, o que o feriu e o marcou e deixou seu rastro, mesmo que invisível. Na Série Auto-retratos faz isso com a memória de outras pessoas. O observador, para ter acesso à obra, é convidado a participar da memória do artista, fazendo suas próprias associações com algo já vivenciado e que ficou gravado como um rastro.



[1] Mônica Pereira Juergens Age, Mestranda em Artes Visuais pela Udesc, na Linha de Pesquisa de Teoria e História da Arte.

[2] Benjamin, Walter. Rua de mão única (obras escolhidas, v. 2). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 239.

[3] Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 40.

[4] Dubois, Philipe. O ato fotográfico e outros ensaios. 14ª ed. Campinas: Papirus, 2012.

[5] Espaço de tempo em que a fotografia está guardada no filme e não foi ainda visualizada pelo fotógrafo, isso na fotografia analógica. Com a fotografia digital pode ser o espaço de tempo em que o fotografo visualiza a foto na própria câmera e principalmente na tela de seu computador. De qualquer forma a fotografia visualizada no computador e a impressa possuem uma diferença significativa de cor e detalhamento, dependendo da qualidade e tamanho do papel, bem como a qualidade da impressora. Mesmo a fotografia sendo visualizada no local em que a mesma foi tirada existe um espaço de tempo para que isso aconteça, mesmo que segundos ou minutos.

[6] Carvalho, Flávio de. Ossos do mundo: as ruínas do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005, p. 43.

[7] Derrida, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: UFSC, 2012, p. 99.

[8] Idem, p. 28.

[9] BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 31.

[10] Benjamin, Walter. Magia e técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura (obras escolhidas, v. 1). 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 181.

[11] Derrida, op. cit..

[12] Idem, p. 131.

[13] Idem, p. 129.

[14] Idem, p. 132.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *