FAM 2010: Inadequação a prêmio

por Tiago de Carvalho

Florianópolis Audiovisual Mercosul 2010, primeiro dia, primeiro longa-metragem, estréia. Marco Ricca, o diretor, proclama algo como “Rompemos nosso contrato de distribuição para estarmos aqui hoje.” Aplausos calorosos. Atitude inadequada aos bolsos. De Ricca, não dos aplausos, certo?

Faz jus a seu primeiro filme como diretor. Cabeça a prêmio, inadequação. Os planos fixos do velho e obeso Valdomiro em sua casa denotam sua inadequação. Geralmente está sentado, letárgico, à frente de sua esposa ou de sua amada filha Elaine. Ele não faz muito. A ilegalidade de suas atividades e de seu irmão e também sócio, Abílio, é posta em prática por três personagens, o corrompido Albano, o inadequado arrependido Brito e o “agente duplo” com a cabeça a prêmio Daniel, o piloto do jatinho, o meio termo, a ponte da droga entre Brasil e Paraguai. Valdomiro é a decadência silenciosa, o fim anunciado, inadequado à fazenda e à família que supostamente comanda. Tráfico de drogas e corrupção minam suas chances de benfeitoria. Pensa-se que Daniel é o protagonista. Claro, é sua cabeça que está a prêmio, ele é o diferente, o que se redime e foge para o Paraguai. Ele está com Elaine, foragidos, e é visto como traidor pelos “homens maus”, Valdomiro e seus comandados. O velho parece sem vida, desmotivado dramaturgicamente. O filme segue essa dinâmica.

Antes disso, acompanhamos o desenrolar de duas relações paralelas: Brito, o assassino do locutor de rádio (aquele que anuncia que falará sobre o amor) e a dona de bar Marlene, Daniel e Elaine. Amores que a instância narrativa elege como ponto de partida. Brito sofre com o inadequado fim do namoro (ciúmes), Daniel morre sob a ordem do letárgico. A ironia é uma cena morta, o locutor de rádio é assassinado após o uso da palavra “amor” de modo burocrático. A sangue frio, a queima-roupa, num plano geral, o resumo da mise en scène: frágil. Corpos estagnados à esquerda, direita ou centralizados no plano. Planos fixos. O trabalho de foco faz a montagem interna de cenas supostamente importantes. Valdomiro conversa com Elaine e Brito termina seu namoro. Personagens masculinos em primeiro plano. Eles têm pouco a dizer, não há muito a ser desenvolvido. Tudo parece dado, raso e inexpressivo, e o trabalho de câmera soa gratuito nesse sentido, inadequado. A montagem de Cabeça a prêmio é sintoma claro disso: apresenta informações e acontecimentos, porém pouco desenvolve, acrescenta de fato. Descompasso entre escolhas estéticas e narrativas. Principalmente dramatúrgicas.

No fim, Brito e Albano, os boêmios peões, matam Daniel. Abílio, o verdadeiro “mal” (complexo por ser mal visto pelo irmão e por sua tendência homossexual), ordena que os capangas também matem Elaine. Brito mata o peão corrompido antes que este consiga obedecer ao malvadão. Assim a gratuidade da história de Brito dentro da narrativa ganha uma suposta justificativa. Sob o ponto de vista utilitarista, Brito só existiria para demonstrar uma mudança de caráter devido o fim de seu namoro. Sua má experiência no amor o transformaria, porém ele também se comporta como um peão, assim como fez no primeiro assassinato, seguindo ordens cegamente. Dessa vez elas vêm da personalidade que a narrativa julga ter desenvolvido. Logo após o término de seu namoro, apenas observa Marlene. No meio da rua, está no centro do plano, escuro, sozinho. Inexpressivo e inadequado, isso é apenas informação. Brito apenas a observa, passivo, assim como nós. Talvez Brito tenha atirado em Albano devido à visão que teve de Elaine abraçada ao corpo estirado de Daniel. Seria a explicação verossímil? Mas não há um reflexo possível, há pouco em comum ou, no limite, nada entre eles. Não há redenção, nem o esboço do que poderia vir a ser uma motivação: fazer o “bem” agora, por não ter feito antes, quando teve a chance? Brito não tem vida, é um esquema, um utensílio narrativo, frio enquanto tal, sem força dramática alguma, fantasma, aparição. Prêmio Deus ex-machina, Brito é apenas resolução gratuita para a espera de Daniel e Elaine no Paraguai por algo que a narrativa não aponta. O que de fato move os personagens?

A palavra “inadequação” e sua respectiva adjetivação não deixam de ser arbitrárias, assim como Valdomiro e Brito, os líderes inadequados, sofrendo de sua condição malévola de forma invisível, letárgica. Para Cabeça a prêmio, tudo bem, isso é adequado. O motel Tudo bem não poderia concordar mais. Evidentemente, eu esperava algo além. Perdi o prêmio. Inadequado sou eu? Tudo bem.

A 14ª edição do FAM começou, assim como nossa cobertura. Sem prêmios e campeões. Somos inadequados.

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