- Um ensaio sobre o messianismo politico, o cinema ensaístico e as desventuras de Sir Ney.
Em seu perfil do Facebook, em meados de 2018, a cantora e performer Ava Patrya Yndia Yracema Gaetán Rocha (a.k.a. Ava Rocha) recomendava um curta-metragem de seu pai Glauber Rocha: Maranhão 66. Realmente impressionam os vários elementos dessa peça de propaganda encomendada por José Sarney, mas que traz o olhar ensaístico e crítico de Glauber em cada fotograma. A apreciação do curta também pode suscitar um possível diálogo entre a fita do brasileiro com outras duas obras cinematográficas – totalmente díspares, diga-se de passagem – pensadas originalmente como propulsoras de ideologias políticas. A primeira delas, Chung Kuo, Cina (1972) do italiano Michelangelo Antonioni. E a segunda, Triunfo da Vontade (1934), da esteta oficial do nazismo Leni Riefenstahl.
As características do estilo ensaístico, tanto literário quanto cinematográfico, em princípio não combinariam com a fabricação de ídolos visada pela propaganda. A linguagem do ensaio (do latim exagiu, ação de pensar) é comumente fragmentária, pessoal, paratática, alegórica e digressiva. Michel de Montaigne (1533-1592) foi o criador do gênero com sua série de textos compilados chamada Essais, publicada em 1580. Porém, antes de ganhar tal nomenclatura, esse tipo de escritura já era praticada desde a Antiguidade, com Platão, Aristóteles, Sêneca, e outros fundadores da cultura ocidental (MOISÉS, 1978, p. 176).
Dentre os três filmes citados, o de Glauber é o que penso conter o maior caráter de ensaio em contraponto ao de fabricar um mito, vender uma lenda vida. O que mais se distanciaria seria o comercial explícito de Adolf Hitler, pois a ala conservadora da política sempre se prestou a endeusar seus líderes.
Estatisticamente, o mito se localiza na direita. É aí que ele é essencial: bem-alimentado, lustroso, expansivo, falador, inventa-se continuamente. Apodera-se de tudo: justiças, morais, estéticas, diplomacias, artes domésticas, Literatura, espetáculos. (…) O opressor conserva o mundo, a sua fala é completa, intransitiva, gestual, teatral: é o Mito; a linguagem do oprimido tem como objetivo a transformação, e a linguagem do opressor, a eternização. (BARTHES, 2010, p.241)
Tendo em vista tais concepções, tanto de ensaio como de mito, me pergunto: como Glauber Rocha chegou a um resultado híbrido, trans-mitológico, digamos? Antonioni teve seu filme proibido na China, justamente o país que o contratou para que mostrasse a glória de Mao Tsé Tung. O documentário de Leni Riefensatahl do comício em Nuremberg, apesar de tecnicamente perfeito, foi execrado após a Segunda Guerra. Maranhão 66, mesmo obscuro, foi elogiado pelo patrocinador de sua execução, o ex-presidente José Sarney. E até hoje encanta a filha de seu criador, a musa underground Ava. Por meio de uma análise do filme e com a ajuda de excertos teóricos de Walter Benjamin, Roland Barthes e do próprio Glauber, busco levantar algumas questões a respeito do curta-metragem rodado em São Luís (MA) dois anos após o golpe militar.
O filme
MARANHÃO 66 – posse do governador josé sarney (título completo, como aparece nos créditos) começa com plano geral do casario colonial franco-português tendo como trilha sonora os famosos tambores maranhenses. O curta é creditado como “reportagem cinematográfica”, com produção de Luiz Carlos Barreto, talvez o mais conhecido produtor do cinema nacional de todos os tempos¹. Assim que terminam os créditos, a banda da polícia militar anuncia a chegada do então governador eleito do estado, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, então com 36 anos. Na ocasião, ele já envergava seu famoso bigode (elemento capilar facial masculino, por sinal, também marca registrada de outro político já citado nesse texto).
Conta-se que seu pai chamava-se Sarney por conta de seu avô, Ney, que trabalhava para um inglês, que o tratava por sir Ney. O nome “artístico” então seria uma homenagem do pai, uma vez que em sua certidão não consta tal alcunha. Formado em direito pela UFMA e auto-intitulado poeta, trocou os partidos socialistas pelos conservadores com advento da ditadura de 64. Entrou para a ARENA, sigla fantoche do regime (depois PDS) da qual só se livraria em 1984, quando candidato a vice-presidente pelo PMDB de Tancredo Neves. Este morto antes da posse, em 1985.
A película de 1966 continua a mostrar esse anti-heroi nordestino. Ao lado da mulher, dona Marli, passa tropa de soldados em revista e é ovacionado pela população da unidade federativa – desde aquela época com os menores índices de desenvolvimento humano do país. Destaca-se a profusão de guarda-chuvas que surgem sobre a multidão que se aglomerava no Palácio dos Leões. Uma chuva tropical naquele 31 de janeiro foi o motivo de tal cenografia involuntária.
Em vez de retratar Sarney como Jean-Louis David o fez com Napoleão, Glauber mostra o governador em plongé, misturado ao povo maranhense. O figurino dos populares era majoritariamente branco: o messiânico, sebastianista e apocalíptico diretor transforma, com suas lentes, uma posse de governador em espetáculo metafísico. Filhos de Gandhi, Lavagem do Bonfim, Réveillon em Copacabana: o Brasil veste-se com a cor de Oxalá para celebrar seus santos.
Sarney é daquela safra de homens públicos canonizados pelos eleitores. Fazem de seus estados verdadeiros feudos nos quais exercem um poder quase que absolutista. ACM na Bahia e Jorge Bornhausen em Santa Catarina são outros exemplos de patriarcas-oligarcas cuja proeza foi deixar suas terras com a cara do século XIX.
Sob gritos fanáticos de “Sarney! Sarney!”, o ídolo sobe as escadas do palácio acompanhado de homens. Todos engravatados. Iguais. Com ternos sem-graça. Neste ponto é bem diferente da ostentação apresentada na cerimônia do partido nazista no filme de Riefenstahl: uma extravagância wagneriana a bordo de uniformes Hugo Boss.
Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. (BENJAMIN, 1985, p.196, itálico do autor)
A diretora alemã, entretanto, dizia ser neutra, registrar somente a verdade. Apesar de lançar mão de todos os recursos técnicos e planos imagináveis nos anos 1930, ela garantia estar filmando a História como ela era (LIMA, 2013, p.67). Com toda máquina nazista a sua disposição, Leni utilizou 30 câmeras, 120 técnicos e até novas pontes foram construídas em Nuremberg para adornar a “cidade cenográfica” de Hitler.
Glauber, por sua vez, não contava com os Marcos que a cineasta do Terceiro Reich esbanjava sem preocupação. Para filmar a realidade do Maranhão preferiu imprimir seu estilo em vez de vangloriar o contratante. No palanque, a câmera vê os eleitores amontoados na praça pelo mesmo ponto de vista de Sarney. Glauber posiciona o aparelho literalmente atrás da orelha do protagonista. Assistimos a uma cena que lembra a histeria dos descamisados de Evita Peron na cinebiografia de Alan Parker.
Começa o discurso. Não o ouvimos direto da boca do orador. É por meio de um áudio radiofônico, que parece vir de um casebre nos subúrbios ludovicenses, que se percebe a fala de Sarney. E assim começa uma viagem pelos bairros da capital: imagens de uma fábrica desativada que vai diretamente – parataticamente – a uma casa de pau-a-pique. Com a câmera na mão, Glauber escancara a miséria local. São crianças famélicas, alegorias de sua estética da fome.
A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. (ROCHA, 1965)
Quando se trata do manifesto “Eztetyka da fome”, bradado em 1965 pelo cineasta, pode-se fazer um liame diacrônico com termo “cosmética da fome”, sugerido por Ivana Bentes em texto publicado em 2001. Se Glauber utiliza uma gama de imagens que remetem à falta de comida e dignidade humana em prol do argumento de seus filmes, diretores do final do século XX e começo do XXI – segundo Bentes – criaram uma atmosfera de pobreza num plano comercialmente maquiado. Em seu artigo “Da estética à cosmética da fome”, Bentes lembra que o Cinema Novo dos anos 1960 deixava de lado a vitimização do povo latino-americano para reverter essa miséria local em poder criador. Filosofia um tanto deturpada na contemporaneidade.
A idéia, rejeitada nesses filmes, de expressar o sofrimento e o intolerável em meio a uma bela paisagem, ou de glamourizar a pobreza, ressurge em alguns filmes contemporâneos, filmes em que a linguagem e fotografia clássicas transformam o sertão num jardim ou museu exótico, a ser “resgatado” pelo grande espetáculo. É o que encontramos em filmes como Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, O Cangaceiro, de Aníbal Massaini, e mais recentemente em Central do Brasil, de Walter Salles ou Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Passamos da “estética” à “cosmética” da fome, da idéia na cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadcam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o “belo” e a “qualidade” da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas. Um cinema “internacional popular” ou “globalizado” cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética “internacional”. Folclore-mundo. (BENTES, 2002, p.86)
Concebido um ano após a publicação de “Eztetyka da fome”, Maranhão 66 mostra a retórica de Sarney, que ataca a já redundante desigualdade social. O clichê da política brasileira. Não será considerado spoiler revelar de antemão que ele teve oportunidade – além de mandar no Maranhão – de ser presidente e senador da República. Após 52 anos do discurso, tanto seu estado quanto o país ainda carregam números vexatórios de subdesenvolvimento humano.
Durante mais uma parte do falatório, um travelling mostra camas vazias do que se assemelha a um hospital desativado. Os armários, as pias, os vasos sanitários parecem saídos de algum documentário sobre Auschwitz. Um plano detalhe, em seguida, destaca falhas nas vias de paralelepípedos. São as bocas banguelas das ruas que sorriem para a câmera enquanto os moradores parecem entorpecidos pela pobreza. Os tipos brasileiros lembram os de Sebastião Salgado. Homens sem camisa – alguns com abdome definido, outros com barriga d’água – esperam pela vinda de Dom Sebastião. Emprego, ao que parece, não havia. Rapazes no auge da força vegetam como moribundos.
Assim como Glauber, o estado do Maranhão também simpatiza com o messianismo. Na Ilha dos Lençóis, no município de Cururupu, há uma população albina que aposta ser herdeira do monarca português morto em batalha no Norte da África em 1578. Muito maranhenses acreditam, inclusive, que São Luís irá desaparecer e surgirão os tesouros do antigo império português, sinal de uma nova civilização luso-brasileira.
Fuscas, Kombis, Jipes, Aero Willys, Rurais e camionetes Ford F10 são mostrados desfilando pelo centro da cidade: maranhenses começavam a experimentar o milagre econômico e morder o fruto sedutor do fetiche pela mercadoria². “O Maranhão não quer a fome, a miséria, o analfabetismo, as mais altas taxas de mortalidade infantil, de tuberculose, de malária…”, assim continua a cantilena monocórdia da voz em off de Sarney. Numa montagem dialética – modelo soviético antagônico ao hollywoodiano – , Glauber corta justamente para a alegoria de todas aquelas mazelas: uma menina convalesce subnutrida numa cama de uma simplicidade doída.
Trata-se de um hospital. A fala de sir Ney é cortada bruscamente para que um dos internos ganhe voz: “Derramei quase minha última gota de sangue. Espero uma operação, mas vejo que morro sem fazer… Estou aqui trêmulo, sem ter um pingo de sangue na minha veia”. É um conterrâneo de Gonçalves Dias que nunca ouviu o canto do sabiá. Não tem nome, nem louros. Uma funcionária da instituição, com uma máscara hospitalar, desabafa: “Nós nunca recebemos o salário, ganhamos 25 contos, e o salário-família nunca recebemos”.
Os olhos assustados de uma paciente esquelética tomam conta da tela. Pele-e-osso que evoca imagens deprimentes vindas do chifre da África via lentes de agências internacionais. As sequências que se sucedem exigem estômago forte. Um afro-brasileiro escarra sangue em um penico. Uma revoada de urubus povoa um lixão, onde adultos e crianças seminus catam os dejetos. “Temos uma reserva humana de uma força muito grande”, vocifera Sarney, enquanto as imagens mostram vilas miseráveis, nas quais seus moradores sorriem como Santa Teresa em pleno êxtase barroco. Ainda existiria fé naquele inferno?
“Temos nossas palmeiras aqui plantadas”: eis que o poeta-presidente recorre à “Canção do Exílio”. E Glauber aproveita o ensejo para mostrar toda a exuberância da flora local. Sarney canta as glórias do babaçu e toda gordura vegetal que pode ser extraída dele. Na tela: trabalhadores sentados ao chão extraem as sementes da planta com instrumentos pré-históricos.
Já finalizando seu discurso, o governador empossado cita Marquês de Pombal: “Dois deuses antigos eram representados com os olhos fechados; a deusa da Justiça e o deus do amor. Prova de que não eram cegos, porque justiça cega e amor cego são grandes perigos para quem governa nessas paragens. E advertia que não se deveria erigir aqui templo a essas divindades. Vamos com os olhos abertos para a liberdade viver as paixões deste governo novo. Viver todas a horas, todos os minutos, todos os dias. Paixão que hoje é alegria e é sorriso e amanhã, trabalho e perseverança, para construir um Maranhão da liberdade, do progresso, da grandeza e da felicidade”.
Com essa política progressista simplista, o político demonstra, por meio dessa propaganda ensaística, algo que Walter Benjamin já havia alertado:
Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. (BENJAMIN, 1985, p.226)
Num dos trechos mais conhecidos de “Sobre o conceito da história”, Benjamin descreve um anjo – inspirado num quadro de Paul Klee –, que olharia os processos históricos como uma “catástrofe única”, no lugar de uma “cadeia de acontecimentos”. Ele também utiliza a alegoria de uma tempestade para comentar os fatos que compuseram a trajetória da civilização. “Essa tempestade é o que chamamos de progresso”, afirma, categórico.
Assim faz Glauber com sua objetiva. Embaralha a história e cria sua própria lógica. Por meio de fotogramas ou fonemas, ele antropofagia Eisenstein, Welles e Riefenstahl para construir sua fonte barroca berniniana fílmica. Maranhão 66 termina com um carnaval; um batuque dionisíaco. A música dos tristes trópicos.
Notas
1 – O rol de produções de sucesso do cineasta Luiz Carlos Barreto conta com Terra em transe (1967), marco do Cinema Novo também assinado por Glauber Rocha.
2 – Fetiche pela mercadoria ou Warenfetischismus é um conceito desenvolvido por Karl Marx no primeiro volume de O capital (1867). Segundo o filósofo, com o advento da indústria, as relações interpessoais teriam dado lugar à reificação. Ou seja, um contato entre objetos em vez de humano.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. 258p.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 256p.
BENTES, Ivana. O Copyright da miséria e os discursos sobre a exclusão. In: Lugar Comum. Número 17, pp 85-95. 2002.
LIMA, Matheus Feitoza Vaz de. Riefenstahl e o nazismo. Rio de Janeiro: & Publicações, 2013. 112p.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978. 520p.
ROCHA, Glauber. A estética da fome. In: Revista Civilização Brasileira. N. 3. 1965.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 224p.
VASCONCELOS, Mauricio Salles. Jean-Luc Godard: história(s) da literatura. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2015. 300p.
Rafael Vieira Sens é Jornalista, mestrando em Literatura e graduando em Letras-Alemão na UFSC
Texto Editado Por Bernardo Schmitt