O artista do traço biográfico e memorial

Marina Martins Amaral[1]

O trabalho de Paulo Gaiad é notório por transitar entre a pintura, o desenho, a fotografia, a instalação e a literatura. Em suas obras temas como memória, tempo, perda, dor e movimento são recorrentes. Segundo Gaiad, todos os seus trabalhos são desenvolvidos a partir da emoção, é a partir dela que se dá todo seu processo criativo. Paulo Gaiad usa de sua vida e memória como base para seus trabalhos, o artista se coloca direta e indiretamente em cada obra de forma intensa e sem reservas.

Apesar de a obra do artista ter caráter autobiográfico, ela não se limita a Gaiad e suas particularidades. A obra possibilita a criação de novos significados a partir do olhar do espectador, assim não se tratando mais do “criador”, e sim da “criatura”. Desta forma, a obra de Gaiad comporta-se como um campo de possibilidades e probabilidades para o observador, fecundando a produção de sentidos. O trabalho do artista ultrapassa o cunho biográfico para ser um bloco de afectos e perceptos. Segundo Deleuze e Guattari, “Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais que sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles.”[2] São sensações e percepções que vão além daquele que a sente. A obra de arte é um ser de sensações, seu objetivo “é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a outro”.[3]

A partir do pensamento de Gilles Deleuze,[4] podemos considerar a arte, e neste caso a obra de Gaiad, como acontecimento. Para o autor o acontecimento está na produção de sentido, ou seja, no sujeito. Desta forma, a biografia e as memórias de Gaiad cruzam sua obra, porém não se tornam mais importante do que a obra em si.[5]

o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não é somente em sua obra que ele os cria, ele os dá para nós e nos faz transformar-nos com ele, ele nos apanha no composto.[6]

Em suas obras Gaiad exige do observador um trabalhoso exercício de leitura, o artista aborda temas densos e de caráter emocional. Não existe uma maneira branda de perceber a obra de Gaiad, pois ela apresenta-se de maneira avassaladora, com temas profundos e dolorosos arrebatando o espectador. Percebe-se que a densidade da obra de Gaiad funciona como um “mecanismo de desarme”, onde tanto o artista quanto espectador tornam-se vulneráveis diante da forte carga emocional apresentada. “Aquele que é tocado por seu trabalho, olhado de volta por ele, percebe ali a essência do artista, percebe que ali tem a chave para ler sua alma e seu trabalho, mas esta não é dada gratuitamente, exige entrega”.[7]

Na série Cicatrizes (figuras 1 e 2), de 1998, o artista cria paradoxos com o material usado. Gaiad nesta série trabalha com aproximadamente três mil folhas de papel, arame e metal. O artista encharca os papeis, todos do mesmo tamanho, com água, e logo após os amarra com fios de arame para ajudar a moldá-los. Após secos os papeis viram blocos duros e pesados, os arames ao serem retirados deixam suas marcas de ferrugem no papel, cicatrizes são formadas. Os blocos de papel marcados pela ferrugem são finalizados com uma capa de metal, uma espécie de chumbo mole que se molda ao formato dos blocos.

 

 Figura 1 – Paulo Gaiad. Cicatrizes. 1998.

 

Figura 2 – Paulo Gaiad. Cicatrizes. 1998.

Paulo Gaiad brinca com os materiais e os transforma criando paradoxos. O papel antes macio e maleável vira um bloco maciço e bruto, o metal frio e forte torna-se dócil e brando. O artista cria livros impossíveis de serem lidos ou folheados, porém atingem o observador a partir de um bloco de sensações. Gaiad se faz presente na obra através de suas vivências, expondo suas cicatrizes, faz com que o observador identifique-se com a dor e aproprie-se da obra como parte de sua verdade. Afinal, todos carregamos cicatrizes, e “Para Gaiad as cicatrizes são o passado no presente. Pode-se eliminar a dor, mas as marcas que ficam do que vivemos são cicatrizes. A cicatriz memoriza o livro da vida”.[8]

O artista interliga suas obras através do recorrente teor memorial e autobiográfico. Em Receptáculo da Memória, de 2002, Paulo Gaiad usa da memória de outros para construir o seu trabalho, trata-se de uma obra compartilhada. O artista faz uma convocatória pedindo para que pessoas lhe enviem objetos que contenham valor sentimental, de significado especial na vida de cada um. O artista pega esses objetos e os reinterpreta, agregando a eles outros objetos e materiais diversos. Miriam Chnaiderman cita Paulo Gaiad, que explica a concepção de memória que permeia sua obra:

No decorrer dos anos, através da visão, do tato ou da audição, recebemos estímulos que vão compor a essência da nossa vida. Os mais importantes ou os mais peculiares ficarão gravados de forma mais clara em nossa memória. Desses, alguns outros estarão relacionados a objetos, que ao entrarmos em contato com os mesmos, seremos arremetidos a um ponto exato. A estes eu chamo de receptáculos da memória.[9]

Muitos objetos pessoais foram enviados ao artista, todos únicos e insubstituíveis em seu valor simbólico. Para Chnaiderman, “há nisso uma homenagem a Paulo Gaiad, uma confiança profunda no seu gesto criador. Mas também tudo isso nos mostra a necessidade de constituição de tribos e espaços para que a história possa ser simbolizada”.[10] Gaiad expõe esses objetos a partir de sua percepção e os imortaliza em caixas lacradas. O artista constrói um relicário de memórias, um cofre capaz de guardar as memórias mais profundas e puras confiadas a ele. A figura 3 mostra uma colher enviada por Bianka Tomie. A colher era usada pela colaboradora de Gaiad quando criança, para tomar remédios, este é um símbolo de sua infância.

Figura 3 – Paulo Gaiad. Receptáculo da memória de Bianka Tomie.

Nessa mesma série o artista, além de compartilhar memórias alheias, também doa o seu Receptáculo da Memória. Gaiad divide com o público parte de si. Em Receptáculos da memória póstuma de meu pai (figura 4), Gaiad coloca em uma caixa de aço, carvão, cinzas e o barbeador que seu falecido pai usava. O artista cria a partir de um objeto pessoal, símbolo de seu pai, fragmentos de dor, morte e saudade.

Figura 4 – Paulo Gaiad. A morte e meu pai – Retrato póstumo.

Paulo Gaiad tenta através desses objetos materializar a memória. Percebemos que para ele a essência da vida provém da memória, e esta se “enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga a continuidades temporais, às evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo”.[11] Luciane Garcez diz que para Gaiad a imagem se sobrepõe à técnica, e é ela que o guia no jogo da memória.

Seu jogo é o da memória que quer ser revelada e esquecida ao mesmo tempo, são as lembranças que Gaiad carrega consigo e traduz em imagens, uma obra que traz a História da Arte impregnada nela, mas não é através do catálogo que ela se localiza.[12]

Podemos perceber a partir da citação acima que a obra de Gaiad apresenta-se de maneira complexa, em um jogo onde o artista revela e esconde ao mesmo tempo suas lembranças. Suas lembranças são expostas em forma de imagens, que são “disfarçadas” por materiais e técnicas diversas que não seguem regras. Apesar do que se pode explicar ou descrever em um catálogo de arte, a obra de Gaiad possui uma característica que não se pode descrever, o registro dela não acontece no exterior, mas sim, no interior, no campo imaterial e individual.

O conjunto da obra de Paulo Gaiad é na verdade uma história. A história do artista. Esta história é contada através de diferentes séries, trabalhos que apesar de singulares relacionam-se entre si, para formar um grande todo. Na obra de Gaiad há sintoma, há rastros que retomam questões iguais, porém de maneiras diferentes. Percebemos ao olhar o conjunto da obra de Gaiad que questões como memória, dor, morte, família, cidade, estão sempre presentes em seus trabalhos. Estes temas aparecem de forma constante, por vezes de maneira explícita, outras de maneira velada, porém sempre fazendo-se presente na obra do artista.

O artista vive a obra, e a obra vive do artista. A questão biográfica é tão forte para Gaiad que mesmos nas obras em que se utiliza da memória de outros, ele se faz presente. O artista apropria-se do outro para imprimir algo particular, “De modo que sua própria subjetividade é perpassada pela subjetividade dos outros”.[13] Em alguns trabalhos o artista utiliza a experiência do outro como suporte para contar sua própria experiência, e vice e versa. Ele descansa suas memórias a partir da memória do outro. É isso o que acontece na série Auto-Retratos, de 2001.

Em Auto-Retratos (figuras 5 e 6), Gaiad realiza uma intervenção, novamente, autobiográfica, incorporando o autorretrato de outras pessoas. O artista faz uma convocatória pedindo que pessoas, de seu universo relacional, façam autorretratos, não necessariamente textuais, e o enviem. Gaiad retrata-se nesses autorretratos em um processo dinâmico de intersubjetividade, onde existe uma troca direta e constante entre a representação do artista e do convocado. Tapado diz que “nesta dialogia entre seu olhar e o do outro, o artista se vê, se revela e se (re)inventa enquanto um ser que se constroi na relação com o outro”[14] O autor continua e explica que Gaiad está longe de ser um narcisista freudiano “que se identifica como dobra de si mesmo, Paulo, pelo contrário, se espelha na imagem do outro, isto é, aquilo que o outro tem de si próprio contido nele”.[15] A obra de Gaiad mantém-se coerente com a proposta do artista, o eixo da memória, do pessoal, não se perde apenas se modifica a cada trabalho.

Figura 5 – Paulo Gaiad. “Tomaz, Pedro e Adriana” – Auto- retrato de Adriana Rocha e filhos.

 

Figura 6 – Paulo Gaiad. “Eu sou fera”- Auto-retrato de Eduardo Lie Gaiad.

O artista coloca-se incansavelmente na obra, mesmo através de outro sujeito. Gaiad lida com os fatos passados e cotidianos; trabalha questões memoriais, pessoais, seguindo uma reflexão biográfica a partir de uma leitura plástica atual e de um pensamento contemporâneo. Gaiad em sua obra revela uma vontade transformadora, uma necessidade de desconstrução e reconstrução de significados. Ele posiciona-se como um homem de seu tempo que está em constante ressignificação de suas memórias. Essas memórias o seguem em seus trabalhos, são rastros, reminiscências que aparecem de forma recorrente.

Paulo Gaiad luta contra o esquecimento. Fazendo um incansável exercício de guardar, acumular lembranças, em um gesto de vulnerabilidade em relação ao tempo.  Vulnerabilidade é o que podemos esperar em sua obra, o artista entrega-se, no clichê do “corpo e alma”, compartilhando com o observador sua vida, suas sensações e desejos. Sua obra é subjetiva, profunda. Gaiad consegue através de uma expressão moderada extrair o máximo de emotividade de seus espectadores. Sua obra é um convite a suas memórias, uma viagem guiada por sua história.



[1] Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Orientadora: Profa. Dra. Sandra Makowiecky. Bolsista Promop.

[2] Deleuze, Gilles, e Guattari, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 213.

[3] Idem, p. 217.

[4] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2007.

[5] Garcez, Luciane Ruschel Nascimento. Imagem-Movimento: Memória e Esquecimento na obra de Paulo Gaiad (artigo para o II Encontro Nacional de Estudos da Imagem), 2009. Disponível em http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais/trabalhos/pdf/Garcez.pdf, acesso em 25 de fevereiro de 2014.

[6] Deleuze e Guattari, op. cit., p. 227-8.

[7] Garcez, op. cit., p. 345.

[8] Makowiecky, Sandra. A representação da cidade de Florianópolis na visão dos artistas plásticos, v. 1. 1ª. ed. Florianópolis: Imprensa Oficial de Santa Catarina, 2012, p. 316.

[9] Gaiad apud Chnaiderman, Miriam. [Entrevista.]. In: Paulo Gaiad (catálogo), 2004, p. 24.

[10] Chnaiderman, op. cit., p. 25.

[11] Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, n. 10. São Paulo: Departamento de História da PUC-SP, 1993, p. 9.

[12] Garcez, op. cit., p. 344.

[13] Tapado, Renato. Os “Auto-Retratos” de Paulo Gaiad. Disponível em http://renatotapado.com/artigos/os-auto-retratos-de-paulo-gaiad/, acesso em 26 de fevereiro de 2014.

[14] Idem.

[15] Idem.

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