FAM 2009: O Prêmio da Crítica e uma Crítica do Prêmio

por Ramayana Lira

Esse texto foi escrito por ocasião da mesa Extra-Fórum do 13º Festival Florianópolis Audiovisual MERCOSUL, da qual participaram Carlos e Myrna Brandão, Felipe Soares e eu. A mesa buscou debater o papel da crítica a partir da exibição do filme A Casa de Alice, de Chico Teixeira. E foi sobre o tema da crítica que propus minha intervenção, que reproduzo a seguir.

Gostaria de lançar algumas provocações em relação ao trabalho da crítica, provocações que, espero, sirvam para complicar cada vez mais o entendimento que temos a respeito de que para que serve a crítica de cinema no Brasil. Vou partir de um princípio nada ortodoxo, que, acredito, coloca em questão algumas suposições sobre a relevância da crítica para o cinema, e para as artes em geral. É um princípio ainda precário na argumentação, mas vou me valer dessa oportunidade para afinar a perspectiva ou, quem sabe, abandoná-la de vez. O princípio de que parto é de que não pode haver prêmio da crítica. Prêmio da crítica é oxímoro. Não pode haver não porque é moralmente proibido à crítica premiar uma obra, mas porque ao premiar a crítica se distancia da sua relevância. Quando premia, a crítica deixa de ser crítica. Quando estabelecido pela crítica, o prêmio deixa de ser prêmio.

A etimologia da palavra “crítica” vem da palavra grega krinein, que implica as noções de “quebrar”, “separar”, “decidir” e que também participa na formação da palavra “crise”. Hipócrates e Galeno, por exemplo, usavam a palavra krisis para designar um ponto de mudança em uma doença. A “crise”, nesse sentido, indicava uma mudança de condição, uma virada que clamava por uma nova abordagem. A idéia da crítica é “quebrar” uma obra em pedaços, estilhaçando-a (a crítica traz em si algo de violência) para se pôr em crise as idéias pré-concebidas em relação àquele objeto.

É preciso lembrar que o prefixo krei implica a idéia de distinguir, discriminar, peneirar. Nesse sentido, remete a um processo de “purificação”, como por exemplo, na prática de purificar o ouro: trata-se de derreter (destruir) o minério bruto e natural, a fim de retirar suas impurezas, para aproveitar somente a parte purificada, para que o minério adquira valor. O “acrisolamento”, esse processo de derreter o ouro, é um processo destrutivo. E quero reter dessa metáfora não a idéia de purificação, mas a de liquefação. Tornar fluido o que, antes, era matéria dura. Uma mudança de estado, de condição, uma condição crítica, que requer nova mirada, quiçá nova morada. Um estado de choque. Como bem quer Manuel Bandeira: “a verdade é que não havendo choque não há necessidade nenhuma de crítica”.

Por outro lado, a origem da palavra prêmio, do latim præmium, remete à recompensa ou lucro derivado de despojos de guerra. Decompondo-se essa origem temos præ- “antes” + emere “tomar”, a parte da presa tomada ao inimigo e retirada em primeiro lugar para ser oferecida à divindade que deu a vitória, ou ao vencedor. O prêmio vem de uma tomada violenta e é entregue aos deuses como pagamento pela vitória. Assim como antes do primeiro gole deitamos ao chão a parte “do santo”, a noção de prêmio vem de uma dívida que deve ser paga à divindade pela benesse da vitória.

Se pensarmos, então, em como a prática da premiação cria uma esfera do ‘sagrado mérito’, não podemos deixar de notar como essa esfera está em evidente contraste à prática da crítica. A crítica que explode a matéria dura é antes de tudo, um ato ‘profanador’, ela não pode se prestar à sacralização.

Em sua obra Profanações, o filósofo italiano Giorgio Agamben parte da tradição religiosa para pensar as categorias políticas, e consequentemente estéticas, do contemporâneo. Essas categorias libertam-se de uma dependência de noções como transgressão da norma ou, mesmo, criação de novas normas; o que temos, no raciocínio de Agamben é a busca pela anulação do potencial normativo da norma, uma operação que ele designa de “desativação”.

Essa estratégia traçada em Profanações aproxima o campo político de formas críticas características das produções artísticas contemporâneas. Já não se trata de “forçar” uma atitude transgressora, mas de uma forma de ação que, de tão “normal”, acaba fazendo com que a própria norma perca sua força normal/tizadora, ou seja, desativando-a. Profanar é, antes de tudo, restituir as coisas, antes separadas na dimensão do sagrado, ao uso da humanidade; é agir para re-instaurar esse uso, raptado pela sacralização que cria uma esfera de objetos “improfanáveis”.

A profanação é um ato eminentemente criativo. Mais do que indignação e revolta em relação ao uso que se vem dando às coisas, propõe-se usos novos, desativando, tornando inoperante o uso velho. É um ato lúdico, como o gato, que ao brincar com o novelo de linha, encontrou novo uso para ele, fora da esfera utilitarista.

A crítica, então, é ato profanador que desafia a sacralização do premium. No mundo contemporâneo, premiar um filme é, como diz o jargão do marketing, “agregar-lhe valor”, ou seja, comprometê-lo ainda mais na lógica de um capital que cada vez mais procura determinar a esfera do improfanável.

Uma crítica profanadora, nesse sentido, não se preocupa com prêmios. Não re-instaura uma esfera sagrada do prêmio, não se preocupa com o resultado dos despojos. A crítica profanadora sabe que o prêmio da critica é também o prêmio para a crítica: a crítica se premia com a legitimidade para premiar, ela própria se sacraliza, sacerdotisa, ou pior, vestal, ou sibila. Pode-se argumentar, que se trata apenas de um prêmio, deixemos a crítica premiar, não tem importância. Mas tem importância sim. É preciso recuperar o sentido político de uma crítica profanadora e desativar essa tendência à premiação que, além de reforçar dispositivos do capital, revela a busca por uma legitimação, um espaço de poder que é antinômico da própria noção de crítica.

4 thoughts on “FAM 2009: O Prêmio da Crítica e uma Crítica do Prêmio

  1. Rama, assino embaixo de sua vigorosa exposição. Só interfiro em detalhes para pensar que talvez não fossem exatamente “categorias políticas, e consequentemente estéticas”. Em Tempo e História, Agamben critica esse velho tempo das consequências em prol de outro tempo que, para ser crítico, deve delas se desfazer para investir e ampliar o agora do tempo de agora. Além do mais, talvez possamos pensar a arte e a política para além de um pensamento que, ao se definir como estético, remonta, entre outras coisas, a esta consequência chamada premiação que você tão bem mal quer como tarefa da crítica.
    Brincando: ludus ou jocus? Paradoxo ou contradição? Há controvérsias…

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