por Marcos Blasius
Ele (Selton Mello), homem desprovido de passado, encontra Ela (Alessandra Negrini), a mesma coisa, a não ser a recente perda do pai doente e o fato de estar sozinha no mundo. Ele lhe promete companhia enquanto permanecer vivo. Pronto. Mais um caso de amor foi selado num filme de Júlio Bressane – o que não seria excesso entendermos como amor pelo cinema, numa intensidade jamais vista. A experiência que temos ao nos depararmos com tipos cujo relato sobre o passado não nos é oferecido, talvez justifique a secura com que se dá esse enlace. Sem passado, esse dado fantasmagórico que dá margem a quase todas as nossas elucubrações, os dois não terão outra resolução senão juntarem-se. Eles não nos apresentam profundidade suficiente para que o enlace se constitua em jogo ou tome algum destaque no filme, até porque não é isso o que importa aqui. Eles apenas precisam estar juntos, e o filme precisa disso pra funcionar, ao que a resposta imediatamente se dá. Na empresa poética, arranjam-se as palavras a favor do que elas podem melhor dizer (a despeito do que se tem por aí como lógica), e é aí dentro que A Erva do Rato irá funcionar. É simples, e podemos dizer que há sim uma lógica nisso tudo, quando a lógica – ou apenas o estopim – do cinema de Bressane é o amor. Os dois estão juntos e isso lhes/nos é suficiente. Dado isso, como se já não bastasse, o próximo passo do filme: baratinar.
O casal passa a viver junto no interior de um casarão de linhas coloniais, vestindo trajes que nos remetem quiçá ao século dezenove e ao som de latidos intermitentes vindos do exterior. Essas características todas, somadas à informação de Machado de Assis (mais uma vez o alimento de Bressane), talvez nos tragam depois de algum tempo a idéia inconsciente de estarmos numa casa (é risco lançar tais sentenças) de campo. Se assim for, de repente sutilmente sentimos a trilha sonora ser invadida por toda a sorte de ruídos de automóveis, provavelmente captados na avenida mais movimentada de uma grande cidade. O uso inventivo do som é só um exemplo, entre todos os outros usos que aqui revelam também a intenção barroca por trás de todos os planos, o tecido complexo que eles formam e o seu rescaldo principal: o extracampo. Talvez grande parte do virtuosismo de Bressane se deva a ele, pois nos ampara, garante-nos uma segurança bizarra uma vez que a imagem que temos à nossa frente propositalmente oscila e nos parece frágil demais para significar; e as imagens, como o próprio Ele/Selton pôde constatar, sucumbem de repente.
Ele/Selton se caracteriza por algumas excentricidades, a principal delas um apreço (mais tarde obsessão) por colecionar. É engraçado perceber como quase tudo o que lhe pertence ou chega aos seus ouvidos carece de ser domado através da coleção. É a maneira que encontrou para lidar com os mistérios que o atravessam, sobrepondo-se a eles. E faz isso naturalmente, como parte da rotina. Assim, passa os dias recitando trechos de enciclopédia para que Ela/Alessandra, submissa, transcreva tudo em pequenas brochuras que se acumulam ao longo dos dias, ou descreve valendo-se de licenças poéticas as características geológicas de famosas elevações rochosas do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, tal comportamento atinge a representação máxima quando Ele decide colecionar o objeto do seu amor, o corpo de Ela.
Munido de sua câmara fotográfica, ele pede à amada que ela lhe permita fotografá-la à sua maneira. Assim iniciará um movimento de aproximação, de investigação e finalmente de coleção desse corpo, por meio de fotografias. Fica para nós dalguma maneira explícito o mero valor de referente que esse corpo carrega para Ele, dada a importância que o registro constitui. Acumula closes dos seios, da vagina, das nádegas etc num pequeno baú, seu tesouro, ou a imagem do seu amor finalmente enjaulada. Por algum fetiche ou para melhorar o efeito dos ensaios, chega a projetar sombras de cabeças humanas na parede, eclipsadas por cartolina recortada, para a dar a idéia de uma platéia de voyeurs assistindo-a. Nesse primado das aparências, para Ele tanto faz se sombra ou corpo, a platéia está ali. Ademais, é interessante notar que em nenhum momento do filme o toque físico entre o casal acontece. A relação se dá justamente por diálogos lacônicos e pelo divagar das personagens. A intimidade, quando existe, fica a cargo do índice fotográfico. Num desses episódios de divagação, o casal tece num diálogo pausado e cadenciado (a “solenização” das situações banais) uma pequena biografia de Hércules, falando da sua grandeza e coragem, os seus feitos e as batalhas que venceu. Como o citador que sempre foi, a mitologia tem sido um dos principais pontos de partida de Bressane nos seus filmes mais recentes, e é ela que ilustrará e introduzirá a metáfora do rato, a ameaça ao modo de ser de Ele, pois, como Hércules, da ordem do implacável.
O fato é que surge um rato na casa, que acaba corroendo as fotos guardadas no baú. Após a descoberta, Ele atônito busca um meio de liquidá-lo, mas sem sequer saber onde encontrá-lo. Ratoeiras, armadilhas, em vão. O rato não existe por enquanto, é um fantasma, não pode ser nem fotografado ou morto. E este destrói justamente o que o mantém vivo. Certa noite, vemos esse rato caminhando sobre a cama onde Ela dorme, e honrando a dimensão erótica do cinema de Bressane, entra por debaixo da coberta e faz algo que Ele nunca fez, tocá-la. Quando Ele, acometido pela insônia perambula pela casa temendo encontrar o animal, vê tatuada nas costas nuas de sua mulher a imagem do rato, em vermelho – e toma-se de horror, qual a lida de Machado com o ciúme em sua obra. Em seguida, o rato é capturado por uma das armadilhas para ser, como narra o Machado evocado aqui, torturado, sendo exposto à chama de uma vela e tendo as quatro patas cortadas com uma tesoura. Ao episódio de sadismo segue a morte de Ela sem que Ele chegue a ter a oportunidade de reproduzir o ensaio fotográfico, e a intensificação do comportamento de Ele nesse lidar com a imagem.
Com o esqueleto da mulher, Ele continua a fazer as fotos, reproduzindo as mesmas posições, os mesmo detalhes da iluminação. Provavelmente agora Ele a toca, tendo que moldar as junções do esqueleto para que fique como da primeira vez. Agora o esqueleto também é um índice, de maneira que o toque de Ele é justificado, tendo em vista a sua vida girar em torno apenas dos vestígios dessa vida e de seus lampejos de indexação. Da fé que Ele tem naquilo que não é, mas que representa, emerge a ironia. O ato insólito de fotografar aquele ex-corpo transforma o rito em obsessão. Para nós a imagem pode se tornar até melancólica, quando a beleza do corpo de Ela/Alessandra Negrini é substituída pelo seu esqueleto. Mas Ele ama assim, e pouco importa.
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Mas só se falou da parte literária, cadê o filme… ? Se não se sabe que é um filme, pode-se ler como o enredo de uma peça de teatro, ou de um livro (né ? um livro).
Para quem assistiu, não há acréscimo nenhum.
Não sei Marcos, não vi amor ali. Me pareceu mais um casamento (ou nem isso, apenas um ajuntamento) justamente sem amor, a partir de uma relação de objetificação d’Ela por Ele.
O filme me pareceu tratar dessa relação em forma de objeto, da ascensão e queda de uma lógica racional encarnada por Ele e de todo estreitamento que pode haver nessa dinâmica. O fato de Ele continuar batendo fotos do esqueleto é muito sintomático (e triste), pois ela, no fundo, não importa. O que importa é o ato de dominar e catalogar coisas, de executar sua obsessão e se impor (os cliques incessantes no último plano, a insistência burra e burocrática neles).
A postura de Ele me pareceu um comportamento de buscar uma totalidade e os ratos são justamente os que roem pelos cantos essa tentativa de controle total e objetiva. Por isso desestabilizam a ordem e precisam ser exterminados. E mesmo no prejuízo (a morte d’Ela), Ele deve continuar seu procedimento, até que não sobre mais nada.
Numa tentativa de simplificar, parece-me que, como acontece muitas das vezes nas relações de um casal, Ele consome Ela assim como o rato rói as suas fotografias.
E, daí, quem é o RATO? O que rói as fotografias ou o que desarma as ratoeiras?.
{8¬?
Marcos, pelo menos em relação à temporalidade, você foi ao ponto. É disso que se trata, embora seja necessário um reparo: as roupas que Eles vestem não remetem ao século XIX, mas ao vestuário contemporâneo. Entretanto, são roupas de tipo ANTIQUADO. Assim como é antiquado escrever a lápis em cadernos de notas e não usar câmeras digitais para fotografar.
Literatura e cinema são alegorizados aí como atividades antiquadas, que jogam com o tempo (espacializando-o, e tornando-o visível, no caso do cinema), e que ironicamente estão sujeitas a ele.
O rato que rói as fotos e toca o corpo d’ela faz o trabalho “direto” do tempo, que o artista só consegue realizar por intermediação da escrita que Ela faz sobre o que Ele dita e da “escrita da luz” sobre o corpo que Ela exibe para a câmera e ele recorta em fotos.
Estranha forma de amor, essa da arte e do conhecimento, que se fazem fetiches.
Depois de roer o simulacro, o tempo-rato, torturado por Ele, o artista, “roerá” o corpo da vida, d’Ela. O que o cinema filma é o trabalho da morte, como diria Jean Cocteau. E esse trabalho se dá no tempo.
Obrigado a todos pelos comentários.
Lucian, entendo a sua posição com relação à relação do casal. Quando trato do amor – e creio que não me coube no texto discutir sua definição – falo não só do relacionamento homem e mulher comumente difundido, mas da própria obsessão como nós dois já citamos. Na etimologia, “obsessão” avizinha-se a assédio, sítio e cerceamento. Maneiras talvez doentias e excessivas de gostar, mas que ainda podem ser entendidas por amor. (E talvez esteja aí o amor retratado por Bressane em seus filmes, um atrito entre o amor-perfeito e obsessão.) Como disseste, Ele “sitia” sua experiencia amorosa e seu objeto principal (Ela), para torná-la a razão de um sistema que o mantém vivo. O rato, invencível, será obviamente indesejado, por fugir ao seu controle e tacitamente danificar os rastros do seu amor/obsessão. Se as atitudes dEle o afastam alguma medida de sua humanidade, não chegam a afastá-lo da faculdade de amar, por Ela sim, ainda que tratada como natureza morta.
Jair, é de fato um absurdo não me aprofundar na fotografia e nos requintes da mise-en-scène ao escrever sobre o filme. Admito que evitei, pois talvez isso precisasse de um debate à parte a respeito.
Não creio que entre as metáforas a morte esteja tão presente. Talvez eu esteja sendo tolo em pensá-la como algo grave num corpo metafórico, mas quando Ela morre e o esqueleto a substitui, toda aquela solenidade sucumbe diante da ironia. Se tínhamos um palpite do que Ele queria com aquelas fotos, aquelas excentricidades, a ironia e o absurdo cumprem o papel de explicitá-la.
Talvez a idéia da morte só funcionasse se, uma vez o rato vencido (nada mais a perseguir, nem temer: a morte de Deus), ele esmorecesse. Mas fica muito claro que o que ele quer mesmo é manter a rotina e viver aquilo em plenitude. E eternamente, como nos sugere o último plano do filme, quando do lado de fora do casarão ouvimos os cliques, sem que lhes faça sentido cessar.
Inevitável traçar um paralelo entre o FAM e esse filme: Ele é o Mercosul em suas constrangedoras, oficialestas e burocráticas aparições nos longas-metragens. Do outro lado, o ratinho franco-português, que vai roendo o festival pelas beiradas, graças a deus. E Ela, bem, ela é o cinema, obviamente. Vamos ver se até o final da semana Ele vai estar fotografando o esqueleto d’Ela.
Filme chato, lento, muito conceitual. Não sei se foi uma boa escolha justamente para a abertura do festival. Deixou a impressão de que o FAM é só filme cabeça pra intelectual chato. Pena.
Tiago
Quando falo em fetichismo da arte e do conhecimento, a partir do filme de Bressane, amplio a consideração d’Ele (Selton Mello) como personificação da arte, entendendo-o também como personificação do conhecimento. Daí as citações enciclopédicas que a coitada d’Ela (Alessandra Negrini) tem que copiar e daí também as fotos que Ele copia d’Ela, tratando-a como objeto de observação des-amorosa, científica, digamos. Daí a fria obsessão dos registros e o colecionismo obsessivo deles, que nem a morte d’Ela consegue deter. As macabras e ridículas sessões de fotos que prosseguem depois da morte d’Ela são um sopapo em nossa hipócrita contemplação espectatorial das imagens da Alessandra Negrini e sua dublê de corpo, peladas ou seminuas.
O buraco é mais embaixo, e além e acima.
Em “A causa secreta”, Machado de Assis trata justamente do que está ali, obscuramente junto ao que à primeira vista seria “desinteressado” interesse científico ou artístico ou político-social, ou humanitário, mas é sádico, inconfessável egoísmo e desprezo pela vida. Ou curiosidade.
Ou tudo isso, ao mesmo tempo.
Ô Tiago, que mau humor, hem?
Pois eu me diverti muito com A Erva do Rato, que ainda me fez pensar bastante, sobre a vida, a morte, o cinema; sobre a mentalidade e a imaginação curtas dos seres humanos, em geral, mesmo dos que não são “intelectuais chatos”.
Achei ótimo que o FAM tenha sido aberto com um filme do Bressane e não da Globofilmes, por motivos óbvios. Não porque essa importante empresa não possa fazer algo interessante, quem sabe. É que é muito difícil ver um filme do grande Bressane nas grandes telas do seu (e dele, e dela, e nosso) grande país.
Além disso, por que “filme lento” é chato? “Filme rápido” é bom por quê?
Que tal fundamentar a opinião?
Seja pra “filme conceitual” ou filme sem conceito, não vale preconceito!
Caro Jair,
não é mau humor não, nem preconceito, é só uma constatação e minha opinião: o filme é chato mesmo. Não foi à toa que o produtor pediu ao público por TRÊS vezes que tivesse “paciência” com a obra. Ele sabe do resultado pro público em geral, tanto que aqui no Brasil vai ter uma cópia só no circuito tradicional. É a “cópia de honra”, pra não virar um fracasso total… Mas voltando à chatisse da qual falei, é tb escuro, e marrom, marrom demais (não tenho preconceito contra marrom não 😉 Ok, vão dizer que “Amarelo-manga” é muito amarelo. E daí? Esse é marrom! Por fim, não disse que filme “rápido” é bom, nem que prefiro a Globofilmes – cuidado, ao interpretar, colocar palavras no comentário dos outros 😉 Entendo que tem gente que adora “O sétimo selo” e coisas do tipo, mas isso é pros iniciados. Se “A Erva…” tivesse vindo com seu texto do dia 09, aliás bastante bom, a leitura que eu faria seria outra, certamente. Mas isso, como eu disse, é para os iniciados. E que bom que teve gente que gostou.
Viva o FAM!
Tiago
Boa rebatida, Tiago, embora não concorde com esse tipo de divisão (filmes para todos X filmes para iniciados). É um Fla-Flu que não leva a nada. Não teria que ter essa de filme de arte X filme comercial. O que tem que ter é “filme de cinema”, como queria o Sganzerla.
Então, vamos expandir, incluir o que seria jogado pra escanteio, e que não atrapalha ninguém, só ajuda a abrir os olhos e ouvidos, a expandir o cinema e as consciências.
Eu gostaria muito que houvesse no Brasil espaço para todo tipo de filme (principalmente para sua distribuição e exibição). Mas não há. E não é exatamente apenas pelo gosto do público que isso ocorre. O gosto é formado, meu caro. E deformado.
E é vergonhoso que só haja uma mísera cópia desse filme brasileiro num paisão como o Brasil. Isso é apenas um sinal da indigência mental de nossa dita “elite” “intelectual”, que não é capaz de gostar de nada que escape aos seus modelitos estreitos e mal-ajambrados. É por isso que ficam por aí ouvindo “sertanejo universitário”!(Fiquei sabendo que isso existe!)
Quanto ao “marrom” da fotografia extraordinária do extraordinário Walter Carvalho, acho que é sépia. Num filme em cores, esse tom traduz bem a temporalidade do antiquado, conforme comentado acima.
Abrass
Certas interpretações que adjetivam os personagens, procurando traçar suas personalidades objetivas, como se todo filme fosse o retrato de indivíduos concretos (o José e não o Paulo), desvirtua a força do filme em questão. Não creio ser por acaso que Ele se chame Ele, e Ela se chame Ela. O mesmo se dá em relação a detalhes “factuais” da história, de um seu “enredo”. A metáfora em questão não é a metáfora de uma vivência entre outras, mas sim da fatalidade, do universal.
Certas interpretações que procuram definir “o que é este filme em específico?”, como se ao responder esta questão descobríssemos o que ele deixa de fora, o que ele “não é”, por vezes comprometem a abertura metafórica em que se dão as imagens. Por vezes certas interpretações apresentadas aqui (no texto e nos comentários) me pareceram se deixar conduzir por esse código do “é ou não é”.
Quanto menos convencional é um filme (quanto mais “de cinema” é um filme), menos se pode desnudar o seu sentido através de uma descrição objetiva. Em “A erva do rato” não vemos uma história que transcorre simplesmente diante de nossos olhos. Qualquer comentário sobre os seus “fatos” deve ser feito como a devida sutileza a fim de reconduzi-lo ao campo da fábula. Daí que qualquer adjetivação dos personagens deste filme soa estapafúrdia (como por exemplo dizer que Ele –o ele deste filme– é obsessivo, maldoso, excêntrico).
Tudo o que conseguimos reter do amor é uma imagem, uma tara. Não importa o quão obstinado seja o cálculo das distâncias, dos pudores, o sentido do amor sempre permanece infinitamente distante. Não é o rato que comprova que a ordem da vida e de suas fissuras são frágeis: toda vez que perdemos o sentido o perdemos para algo mínimo, mínimo como o instante, brutal como o instante.
“O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever o meu nome”, é verso do poema Os três mal-amados do João Cabral de Melo Neto. Se lemos tal ou qual metáfora num poema raramente procuramos uma sua representação factual. Pra mim, a imagem, o cinema é ainda mais abstrato. Se lêssemos um verso como “Amo o teu esqueleto, com a tara de quem bate fotos”, não nos assustaríamos –a não ser pela sua evidente mediocridade.
O cinema deve gerar mais espanto e menos reflexão.
A metáfora é universal. Ela sempre vai falar da morte. Belíssima a frase do Cocteau, que o sr. Jair Fonseca nos trouxe.
Concordo com muitas das observações do Jair, elas me pareceram as mais adequadas ao tratar do filme. Exceção feita a esta aqui:
“As macabras e ridículas sessões de fotos que prosseguem depois da morte d’Ela são um sopapo em nossa hipócrita contemplação espectatorial das imagens da Alessandra Negrini e sua dublê de corpo, peladas ou seminuas.”
Não acho que exista qualquer tipo de moralização ou iniciativa pedagógica em desmascarar fetiches particulares no filme.
Um filme “de cinema” desafia o olhar naturalmente objetivador da crítica e do espectador.
Um abraço,
Diogo
Acho que você achou o ponto, é isso mesmo Diogo. Quando escrevi não quis de forma alguma moralizar a trajetória que apontei. Contudo acho que fui exageradamente ‘absoluto’ com as imagens do filme e não levei em conta a qualidade metafórica delas, que é o que diferenciam esse e muitos outros filmes do Bressane. Só de lembrar o quanto fui longe naquele plano de louças para chá que pareciam conchas, não sei porque fui tão duro na leitura.
Diogo, concordo contigo, quanto à ausência de “moralização” no recurso às imagens de nudez feminina em Bressane. Acho que não deixei claro o que tentei dizer acima.
O jogo que ele propõe é irônico. Ou seja, ambíguo, e joga também com nossas ambiguidades espectatoriais, com o comprazimento e a curiosidade que temos (eu pelo menos tenho, o Bressane tem, Ele tem, a torcida do Flamengo tem) em ver essas imagens de nudez e que se revela algo também mórbido. Bressane, como vários cineastas de sua raça, é um moralista, no sentido filosófico do termo. E se, à primeira vista, parece não oferecer uma pedagogia da imagem, o tipo de coisa que faz é corroer os clichês, literal e metaforicamente, como o rato.
“Bressane, como vários cineastas de sua raça, é um moralista, no sentido filosófico do termo.”
Muitíssimo de acordo.
Eis justo o que diferencia os grandes diretores do passado em relação aos nossos caros laicos pós moderninhos cineastas atuais.
Eu não vi o filme, mas gostei do texto.