Quem Não Gostaria de Viver Deliciosamente? por Amanda Maia

  • Uma analise do filme A Bruxa, sob a ótica das mudanças da ideia de bruxaria através do tempo.

Até pouco tempo atrás, quando pensava-se em bruxas a imagem que normalmente vinha à mente era a de uma mulher de cabelos grisalhos, nariz adunco e verrugas voando em uma vassoura com seu chapéu pontudo, soltando gargalhadas estridentes noite a dentro. Quando pensava-se então em caça às bruxas imaginava-se aldeões revoltados carregando lamparinas e forquilhas indo denunciar alguma mulher de bruxaria no meio da noite, inquisidores com seus instrumentos medievais de tortura arrancando confissões das acusadas de feitiçaria, mulheres queimando em fogueiras dispostas em praças públicas. Essas cenas e figuras estereotípicas perduraram no imaginário coletivo há muito tempo, porém a representação pejorativa da figura da bruxa vem perdendo potência e aos poucos, influenciada pelo crescimento do movimento feminista nos últimos anos, sendo substituída.

Primeiramente, vale ressaltar que, ao contrário do que se pensa, o caça às bruxas não ocorreu no período medieval. Acreditamos que seja importante destacar que encaixar esse episódio sombrio nos “mil anos de trevas” (como alguns ainda referem-se à Idade Média) foi conveniente. No contexto no qual foi estabelecido a periodização histórica[2], em meio aos movimentos Iluminista e Positivista, era mais interessante deixar certos acontecimentos e costumes no passado Medieval do que no então presente, a Idade Moderna, onde a influência da Igreja e a irracionalidade eram vistos como obstáculos que já haviam sido ultrapassados. Mais do que um evento que carece de exatidão histórica, a caça às bruxas foi um movimento que tomou a Europa e também partes das Américas durante séculos, consistiu em práticas de acusação, perseguição, tortura e extermínio de milhares (ou milhões, não se sabe ao certo o número) de pessoas, em sua maioria mulheres. Essa diferença de gênero também é um ponto que julgamos relevante salientar.

Em geral, as mulheres eram mais suscetíveis à bruxaria pois eram consideradas seres inferiores aos homens, naturalmente culpadas pelo pecado original (afinal foi Eva quem mordeu a maçã proibida, contaminando e condenando a humanidade), e muitos eram os defeitos femininos que tornavam as mulheres mais propensas as artimanhas ardilosas do Diabo. Mas quem era considerada bruxa?Diversas mulheres se encontraram sendo acusadas de bruxaria e, analisando fontes[3], podemos perceber algumas característica em comum entre elas:  mulheres que detinham saberes da natureza e praticavam rituais com diversas finalidades eram facilmente implicadas quando ocorriam infortúnios na colheita, mortes de animais, doenças e calamidades nas comunidades; as parteiras, por possuírem conhecimento sobre plantas medicinais (inclusive abortivas) podiam ser mal vistas além de também serem muitas vezes culpadas pela mortalidade infantil; mulheres mais velhas, solteiras ou sem filhos, por não terem cumprido seu papel de fêmea geradora de crianças, facilmente ficavam mal faladas, assim como as mulheres mais pobres; aquelas de temperamento mais rebelde, muitas vezes jovens, que não se enquadravam nos moldes sociais também ganhavam má fama; as provocativas, que levavam os homens ao pecado por não se encaixarem na conduta sexual correta, eram difamadas; e até mesmo particularidades das mais banais, como possuir marcas de nascença, podiam levantar suspeitas de bruxaria.

Voltando nossa atenção para o quesito das fontes, percebe-se que um evento histórico específico aparece com considerável frequência, tanto no âmbito acadêmico quanto no popular. Trata-se dos julgamentos de Salem, um vilarejo da Nova Inglaterra, que ocorreram no ano de 1692. É curioso, se considerarmos a localização geográfica (nos Estados Unidos e não na Europa, onde a caça às bruxas – e a própria concepção da bruxa em si – iniciou) e a quantidade (os números são menos expressivos do que outros acontecimentos), notar que esse caso em particular protagoniza tantos trabalhos e está tão presente na cultura popular. A temática dos julgamentos de Salem e da caça às bruxas estadounidense é explorada em diversas séries e filmes, dentre os quais destacamos o filme de 2016, escrito e dirigido por Robert Eggers, “A Bruxa”[4]. Algo que chama atenção, tanto de historiadores e pesquisadores quanto do público em geral, é a propriedade da pesquisa realizada por parte de Eggers[5] e, consequentemente, seu alto nível de concisão histórica.

1630, Nova Inglaterra. Uma família de colonizadores ingleses composta por pai (William), mãe (Katherine) e cinco filhos (Thomasin, Caleb, os gêmeos Jonas e Mercy, e o bebê Samuel) é expulsa de sua comunidade devido à divergências religiosas e parte para viver às margens de uma floresta. Percebemos o receio de Thomasin em deixar o assentamento em seu olhar e a culpa, ao rezar pedindo perdão por seus pecados. As dificuldades e tensões já presentes, proporcionadas pelo isolamento e a escassez de comida, se intensificam com o desaparecimento de Samuel, logo no início do filme. A partir desse acontecimento, outros infortúnios recaem sobre a família. A plantação de milho que não provê sustento leva à tentativas igualmente fracassadas de caçar as refeições. A postura de William ao enxergar nos acontecimentos a mão severa de Deus, testando sua fé, é contraposta pela de Katherine, que entende que a família está amaldiçoada. O fato de Thomasin estar se desenvolvendo e tornando-se mulher chama atenção de Caleb, despertando também nele o sentimento de culpa. O atrito entre mãe e filha distância Katherine de Thomasin, que por sua vez busca a aprovação e o amor materno. Em meio a isso, Jonas e Mercy, ainda crianças, encontram diversão quando brincam com Black Phillip, o bode. São as tensões entre os familiares que regem o desenrolar da trama e definem os destinos das personagens.

Seria Samuel vítima da bruxa da floresta? E Caleb, teria morrido devido à feitiçaria da mesma? Teria o orgulho de William, ao deixar a comunidade, condenado a família? Teria o luto feito Katherine sucumbir e incriminar Thomasin? Ou seria Thomasin realmente uma bruxa? Ou seriam os gêmeos os bruxos? E Black Phillip, seria ele o Diabo? As interpretações são inúmeras e o filme nos propõe algumas. Porém não é de nosso interesse (nem de nossa competência) analisá-lo isoladamente como uma obra de ficção e entretenimento. Os quase cinco anos de pesquisa histórica de Eggers fazem com que “A Bruxa” traga, em meio à fantasia, elementos reais nos casos de acusações de bruxaria na Nova Inglaterra. Os sentimentos de culpa e de medo, as adversidades causadas pela pobreza, as dualidades entre religião oficial e práticas populares se fazem presentes em diversos relatos de denúncias de bruxaria.

Destacamos também a presença de diversos simbolismos trazidos no filme, dentre eles ressaltamos o papel de três animais[6]: Black Phillip; a lebre; e o corvo. O corvo surge perto do final do filme para Katherine, que acorda no meio da noite e vê seus dois filhos que já haviam morrido, Samuel e Caleb, vivos. Enquanto conversa com Caleb, a mulher pensa que amamenta o bebê mas na verdade vemos o pássaro bicando seu seio, que irrompe sangue. Podemos ver a lebre em três situações chave, primeiro quando William e Caleb tentam caçá-la sem sucesso, agravando a falta de alimento na família; depois na fazenda quando Thomasin vai guardar os animais na noite que antecede o sumiço de Caleb e por fim quando ele e Thomasin, na tentativa de conseguir comida para evitar que a garota fosse vendida para outra família, vão à floresta (aonde o menino segue a lebre e acaba chegando na casa da bruxa que o seduz e, aparentemente, lança o feitiço que o mata). Já Black Phillip, um bode preto e chifrudo, aparece em muitas cenas. O animal supostamente conversa com Jonas e Mercy, sussurrando palavras, canções e até mesmo acusações para as crianças. O animal é protagonista de acontecimentos importantes, ele diz aos gêmeos que a irmã mais velha é uma bruxa, Thomasin por sua vez acusa as crianças de bruxaria por falarem com o bode, que posteriormente mata o pai da família. O ocorrido faz Katherine acusar a filha mais velha e agredi-la, no confronto Thomasin acaba matando a mãe, o que nos leva às cenas finais do filme, aonde a garota conversa com Black Phillip, que se revela o Diabo, oferecendo à ela prazeres incontáveis e proferindo sua fala icônica: “Você gostaria de viver deliciosamente?” [7].

Acreditamos que seja interessante a maneira pela qual a frase acima se consolidou na cultura popular, aonde o tópico da bruxaria vem ganhando espaço. É perceptível através da observação do aumento da temática de bruxaria, feitiçaria e magia em livros – acadêmicos e literários –, séries e filmes, como a imagem da mulher bruxa está mudando.  Com essa nova concepção alguns dos estereótipos mencionados no início deste trabalho vêm sendo quebrados. Além de sua propagação no entretenimento, também notamos o papel do movimento feminista nessa mudança. A presença da bruxaria nas pautas feministas, reivindicando a importância dessas inúmeras mulheres acusadas, perseguidas e executadas, ressignificando suas vidas assim como suas mortes, é de extrema importância. Faremos um breve apanhado histórico desses dois tópicos, bruxaria e feminismo, para contextualizar nossa fala.

            Desde a segunda metade do século XX o movimento neopagão reacendeu inicialmente na Europa e mais tarde em diversas regiões do mundo. Pelo fato de que esse termo é comumente usado de maneira equivocada e pejorativa, tentaremos aqui elucidar brevemente seu significado[8]. Para explicar o neopaganismo primeiramente faz-se necessário definir o que é paganismo, termo (derivado do latim e significa camponês) que foi usado como maneira de referenciar as religiões politeístas – que cultuam mais de um deus – europeias, presentes antes da época do estabelecimento da fé cristã. Seu uso difundido pelo cristianismo carregou durante muito tempo conotação pejorativa, pois para instaurar sua religião como oficial os cristãos rebaixaram e demonizaram as religiões tradicionais. Porém, nas décadas de 1950 e 1960 nota-se que certos grupos passam a se auto denominar neopagãos, ou seja, novos pagãos. Esses grupos eram compostos por pessoas que buscavam reconstruir e adaptar as religiões de seus ancestrais para o mundo contemporâneo. Dentre esses grupos, destaca-se a Wicca, uma religião influenciada por práticas e crenças de origens variadas, de tradições pagãs europeias ao ocultismo, que possui diversas ramificações e vertentes. A Wicca é muito abrangente, seus adeptos cultuam diferentes deuses e é primordialmente uma religião matriarcal, porém existe certa predominância do culto dualista entre a Deusa Tríplice (que tem suas três faces – Donzela, Mãe e Anciã – ligadas à fases da lua) e o Deus (normalmente representado por uma figura de um homem com chifres, similar à Pan e Cerununos).

Contemporânea ao surgimento do neopaganismo e da Wicca, temos a segunda onda do movimento feminista[9]. Muito presente nas reivindicações dessa ocasião estavam as questões de desigualdades socioculturais e políticas, abordando também a opressão sexual e reprodutiva. Ressaltamos que o papel do coletivo é fundamental nos movimentos feministas, é através da coletividade que se fazem presentes o apoio e a potência necessários para o fortalecimento e empoderamento das mulheres. Temos na Wicca não só a figura da Deusa – uma representação de força, sabedoria e poder – mas também a preocupação com o restabelecimento dos vínculos com o Sagrado Feminino[10]. Por esses e outros motivos, até os dias atuais vem crescendo o número de mulheres que encontram na Wicca espaço para se descobrirem e se libertarem. Outro campo que possibilita esses conhecimentos é o acadêmico. A existência de uma produção acadêmica (majoritariamente feminina) ampla e em constante desenvolvimento evidencia a vigência e relevância dessas pesquisas.

Dentre os trabalhos que se acentuam nesse cenário, trazemos o livro “O Calibã e a Bruxa”, da escritora e professora italiana Silvia Federici. Lançada em 2004 a obra vem ganhando cada vez mais espaço no âmbito acadêmico, atraindo pesquisadores de diversas áreas. Pautada em conceitos teóricos marxistas e foucaultianos, Federici critica os mesmos por não proporem uma análise do papel da mulher no processo de formação do capitalismo, cujo impacto nos corpos femininos foi imenso. O livro, que é dividido em cinco capítulos, transita temporal e espacialmente entre os séculos XV e XX, entre Europa, América e África (as duas últimas durante seus períodos coloniais e independentes), abordando como a acumulação primitiva e o subsequente desenvolvimento do sistema capitalista afetou a mulher, e como esse processo influenciou na caça às bruxas. A autora encara a figura da mulher bruxa “enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir” (FEDERICI, 2017, p. 24) e podemos encontrar nesse mundo de sujeitos diferentes características presentes nas bruxas retratadas pelo entretenimento contemporâneo, tais como a rebeldia e o afronte as normas sociais impostas às mulheres, o contato com a natureza e a relação íntima com o Sagrado Feminino.

Considerando todos esses fatores e retomando nosso enfoque para o filme “A Bruxa”, a proposta de Black Phillip parece então extremamente atraente: em uma sociedade machista e proibitiva que restringe a participação feminina, reduzindo-a à reprodução e à sustentação da satisfação masculina, viver à margem desta é libertador. Tão libertador quanto – tal como Thomasin na última cena do filme – flutuar ao redor de uma fogueira despida e solta de todas as amarras sociais. Afinal, quem não gostaria de viver deliciosamente?

Notas

[2] A própria periodização, convenção historiográfica de dividir a História em eras conforme certos critérios, é um fator a ser problematizado, porém não entraremos em maiores detalhes aqui, por não acreditarmos que seja esse o espaço apropriado.

[3] Dentre as fontes analisadas, algumas encontram-se aqui indicadas na bibliografia recomendada, mas ressaltamos que a lista integral é composta por diversos títulos, bem como distintos tipos de material, visto que faz parte de um estudo mais aprofundado (e ainda inacabado) que vem sendo realizado por parte da autora.

[4] Cujo título original é “The VVitch: a New England Folktale”, livremente traduzido como “A Bruxa: um folclore da Nova Inglaterra”.

[5] Novamente pontuamos que não caberá aqui uma análise mais profunda do filme, indicamos para essa finalidade a leitura da monografia trazida na bibliografia recomendada.

[6] Tanto na Bruxaria Moderna quanto na Tradicional, os símbolos agem como meio de expressar algo que não pode ser dito, e esses três animais possuem significados simbólicos.

[7] Livremente traduzido do original inglês arcaico “Wouldst thou like to live deliciously?”.

[8] Para maior aprofundamento nos tópicos de neopaganismo e Wicca sugerimos a leitura dos livros de Farrar, Gardner e Murray, indicados na bibliografia recomendada.

[9] A bibliografia sobre esse tema é extensa e aqui apontamos a obra de Beauvoir, recomendada no final deste trabalho.

[10] O Sagrado Feminino é “uma filosofia ancestral que busca honrar a sabedoria passada de geração em geração sobre a conexão com os ciclos lunares e o respeito pela sexualidade feminina.” (PAIVA, 2018).

Bibliografia Recomendada

Filme:

A Bruxa. Título original: The VVitch: A New-England Folktale Direção: Robert

Eggers. Duração: 1h32min. Ano: 2016. Produção: Parts and Labor, RT Features, Rooks Nest

Entertainment, Code Red Productions, Scythia Films, Maiden Voyage Pictures, Mott Street

Pictures, Pulse Films, Very Special Projects. Distribuição: A24, Andes Films, Elevation

Pictures, Interfilm, United International Pictures (UIP), Universal Pictures International

(UPI), Universal Pictures Home Entertainment, Universal Pictures.

Livros:

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

FARRAR, Janet e Stewart. Oito Sabás para as bruxas. São Paulo: Anubis, 1999.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

GARDNER, Gerald. Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras. 2003.

GINZBURG, Carlo. História Noturna: Decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras,

2012.

KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: Martelo das

Feiticeiras. 11. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1995.

MURRAY, Margaret. O Culto das bruxas na Europa Ocidental. São Paulo: Madras. 2003.

THOMAS, K. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra, séculos

XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

Sites:

KERMODE, Mark. The Witch review: original sin and folkloric terror. 2016. Disponível

em: <https://www.theguardian.com/film/2016/mar/13/the-witch-film-review-robert-eggers>. 

PAIVA, BahBee. Porque as feministas são chamadas de bruxas. 2018. Disponível em :< http://www.todasfridas.com.br/2018/07/10/porque-as-feministas-sao-chamadas-de-bruxas/>

Monografia:

RAVAZZOLO, Diego Brandão. Ordenha Sangrenta: marcas de historicidade inseridas na narrativa cinematográfica do filme A Bruxa (2016). 2018. 71 f. TCC (Graduação) – Curso de Licenciatura em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

Amanda Maia. Designer de moda formada pela UDESC, figurinista e professora, cursando História na UFSC, aonde também é bolsista do PIBID. Atualmente pesquisando sobre bruxaria, mulheres e imagens. E-mail para contato: amandagpmaia@gmail.com

Editado por Bernardo Schmitt

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *