- Neste editorial, nosso querido filósofo de carteirinha discute sobre como pensar criticamente. Que comunista safado…
Muitos de nossos leitores são estudantes ou pessoas que, em geral, prerrogam-se o desejo de viver numa sociedade mais reflexiva e mais crítica. Eis então nosso presente tópico: como ser Crítico? Tenho uma impressão curiosa sobre os que se dizem pensadores críticos, a saber, eles se igualam em número aos que se dizem pessoas que respiram. Tenho uma segunda impressão ainda mais curiosa sobre os que se dizem pensadores críticos: a maior parte acredita que a maioria dos outros não o são. Que exemplar paradoxo!
Após esse início, tudo indica que minha primeira função é determinar se sou um pensador crítico, caso contrário, de que serve ler minha opinião sobre o assunto? Bem, eu espero que o teor do assunto crie interesse por si só, uma vez que renegarei minha aparente obrigação de me auto-intitular como membro deste seleto grupo a que todos pertencem, mas que ainda assim a maioria não o faz. Deixarei que você, ao findar da leitura determine por si mesmo, se me inclui no grupo ou não.
Sem mais preliminares, vamos tentar adentrar o tópico. Primeiro devemos discutir quais características o pensamento crítico deve ter. Parece razoável que uma dose de ceticismo sobre afirmações quaisquer que permita filtrar e rejeitar várias delas como falsas deve estar incluso. Também parece intuitivo adicionar que o pensamento crítico deve ser multimodal, ou seja, valer para áreas que não se tenha muita expertise. Menos claramente, podemos adicionar que é necessário uma certa lentidão para se tomar decisões, uma certa rigidez fugaz. Não uma estabilidade de opinião, isso seria o dogmatismo, praticamente o oposto do pensamento crítico, mas um cuidado para não oscilar de ideia de acordo com qualquer moda nova. Se a “moda” se mostre bem fundamentada após algum tempo de seu começo, a mudança de opinião seria a atitude adequada, mas ir com a maioria a sabor do vento não se mostra com o ideal.
Tendo pelo menos tornado um pouco mais claro o que esperamos de um pensador crítico, ainda que haja outras coisas que possam ser ditas, espero que consigamos avaliar o porquê de tantas pessoas rogarem-se o direito desse título. A razão é simples: pensadores críticos não são feitos de trouxa e estão certos mais frequentemente do que errados. Além disso, conseguem dizer e constatar coisas interessantes e autorais. Bem, isso explica o porquê de todas as pessoas quererem sê-lo e, igualmente, o porquê de acharem que o são. Afinal, o que é interessante o é referente a um referencial subjetivo, então as pessoas que decidem dizer algo, entendem que o que vão dizer é interessante, e automaticamente, isso os torna pessoas que dizem coisas interessantes. Sobre nossas crenças, se as temos, é porque as julgamos corretas. Por fim, todo mundo é feito de trouxa às vezes, e o sempre odiamos, no entanto o papel de trouxa que importa pra nós é aquele que quem o faz, o faz com tanta intensidade que gosta. Esse é o papel de trouxa que vemos nos outros, mas não em nós mesmos. Por fim, todas as pessoas se julgam pensadores críticos, pois todos julgam que têm as características sintomáticas de serem pensadores críticos, e essa crença advém dos critérios subjetivos e imprecisos que usamos para julgar. Ainda, se pode afirmar que há um erro lógico nessa inferência, a saber, mesmo que pessoas que atendem os critérios elencados acima sejam interessantes, certeiros, etc. isso não nos permite afirmar que todo mundo que for interessante, certeiro, etc. é um pensador crítico. Isso é uma falácia chamada de afirmação do consequente.
De que importa essa discussão para nós? Bem, agora que temos essas considerações em mãos podemos avaliar como se pode obter o pensamento crítico, onde ele se manifesta na vida real e onde não. Eu não farei uma lista exaustiva, até porque eu não tenho essa capacidade. Mas pretendo apenas apontar para certos comportamentos que não se alinham com o espírito do nosso objeto de análise. Para começar, pensamento crítico não é alheio nem oposto à erudição. Erudição, aqui, não quer dizer conhecimento de clássicos, mas sim de domínio extensivo de algum assunto, qualquer que seja. Aparentemente, fãs de um certo pseudo-filósofo brasileiro (Olavo de Carvalho) acreditam nisso. Bem como muitos militantes (mas me arrisco a dizer que não é a maioria) de ideologias bastante diversas. O ponto em questão se divide em dois: os que criticam estudiosos por “apenas lerem e não sairem para ver a realidade” e os que os criticam por “apenas leem e nunca pensam nada de original”. As duas críticas encontram um tipo de respaldo no mundo, tanto quanto sei. Há os teóricos que, de fato, têm um péssimo entendimento de como as relações básicas do mundo funcionam. Não sabem fazer compras, não entendem de relacionamento pessoal, etc. Mas nada garante que é a quantidade de estudo que leva a isso, tampouco que seja óbvio que, se não se ver e viver as questões políticas, não as se entende. É plenamente possível que uma análise baseada em dados bem obtidos seja mais confiável do que uma cuja amostra se limite às observações individuais de alguém. Afinal, muitas pessoas usam suas experiências pessoais para justificar afirmações totalmente contraditórias. Isso ocorre, inclusive, com mais frequência do que no caso de estudos acadêmicos. O outro grupo erra de forma pior e mais arrogante. Quando acusam quem tem ampla erudição de não pensarem por conta própria eles se equivocam de duas formas brutais. Estes assumem casos específicos e, geralmente, oriundos de análises superficiais do que se propôs e extrapolam para todos o que estudam a fundo algo. A conclusão desse grupo de olavetes é que se você estuda, então você não está pensando por si mesmo. Por outro lado, se você pensa por si mesmo e não concorda com o Olavo, então você não estudou o bastante. Ainda afirmam que se você estudou a fundo em alguns tipos de instituições você fica impregnado de erro. Todas são afirmações falsas.
É fácil ver que algumas pessoas podem ler muito e ainda terem ideais originais, basta pegar qualquer lista de gênios da humanidade. Afinal, Marie Curie conhecia toda a física relevante da sua época, bem como Rosalind Franklin conhecia toda a biologia relevante. Isso não só não é antagônico com ter ideais originais e pensamento crítico quanto, pelo contrário, é necessário para certos casos. Para se poder rejeitar uma tese em física de ponta, se precisa entender os fatos relevantes, as pressuposições, os argumentos, etc. Naturalmente o mesmo ocorre com pensamentos originais. Sem se ler o que se diz sobre algo, como saber o que é original?
O pensamento crítico deve se guiar para além da área de erudição específica, como dito. No entanto, ele depende de um conhecimento geral a partir do qual se pode rejeitar afirmações e apelos. Disso podemos seguir para a próxima análise, essa mais polêmica. Estudar ciências naturais dá tanto arcabouço para o pensamento crítico quanto às humanidades.
Isso é fácil ver, afinal, sabendo como o mundo funciona temos mais chances de determinar como ele não funciona e saber como as coisas não são nos guiam mais diretamente para rejeitar conclusões. Saber, por exemplo, como a gravidade funciona faz você saber, sem erro, que os astros não podem te afetar gravitacionalmente de nenhuma forma relevante. Saber o que é uma onda eletromagnética ajuda a entender que os astros não podem te afetar com elas de nenhuma forma relevante, bem como outros seres humanos, ou como objetos quânticos etc. ou seja, saber física ajuda a manter seu dinheiro na sua carteira. Mais que isso, no caso da biologia, entendê-la ajuda você a não acreditar em declarações espalhafatosas sobre genes, curas de doenças, determinismos biológicos, funcionamento curioso e milagrosos de nutrientes alimentares e assim por diante. Saber biologia te ajuda a se manter vivo e, também, a evitar gastar dinheiro com coisas inúteis ou perigosas. O mesmo segue para todas as ciências empíricas. Uma conclusão mais geral que podemos tirar é que se a ideia é não ser feito de trouxa por charlatões, a melhor opção é estudar ciência e nem precisa ser em nível muito técnico, livros de divulgação de qualidade como os de Carl Sagan “Cosmos” e “o Mundo Assombrado pelos Demônios” ambos de escrita primorosa e de qualidade teórica ímpar estão traduzidos para o português. Muitos outros do tipo existem e quase todos valem muito a pena.
Outra coisa, voltando a um reino mais tradicionalmente determinado pelas humanidades, o campo ideológico, que podemos dizer quase com certeza, se formos honestos e humildes o bastante, é que o grupo dos pensadores críticos não é igual ao grupo dos adeptos de x ou y ideologias. Ainda que algumas ideologias como religiões ocidentais e fascismos sejam, na minha opinião, fundamentalmente opostas ao pensamentos crítico, basicamente por ofender os princípios estabelecidos acima, acredito que a maioria das ideologias restantes conseguem ser defendidas com plausibilidade. Isso acarreta, basicamente, que nem todo mundo que não concorda com você sobre política deve, automaticamente, ser um idiota ou um iludido. Ser de esquerda, seja lá o que isso significa, não torna alguém um pensador crítico, nem ser de direita o faz. Nem é o caso que ser de esquerda implica que alguém é alienado e o mesmo para a direita. Pessoas simplesmente discordam fundamentalmente e disso se extraem, sem decréscimo de inteligência, ideologias diferentes emergindo no mundo de ideias e ideais.
Feitas essas digressões, chegou a hora de propor o que eu vejo como um método de manutenção crítica de crenças. A primeira coisa a se notar é que se está errado na maior parte do tempo sobre quase tudo. Aceitar isso não é parar de ter opiniões, pelo contrário, só se pode estar errado ou certo se se acredita em algo, aceitar isso é manter em mente a possibilidade da mudança de opinião. É importante lembrar também que se pode ser crítico e certeiro com relação a um grupo de tópicos e totalmente dogmático com relação a outros.
Essas duas considerações prévias nos levam ao início do método: para qualquer crença (teórica ou disputável) que se tem, deve-se pergunte “o que me mostraria que eu estou errado sobre isso?” quando se tem uma resposta pontual e precisa, também se têm crenças pontuais e precisas e apenas essas podem ser avaliadas, defendidas ou corrigidas. Claro que isso é mais do que difícil para se fazer para todos os casos. Porém, já basta que se faça nos contextos em que você reflita sobre coisas em particular. Um exemplo pode ajudar. Um religioso poderia se perguntar “O que poderia ser mostrado para mim como evidência de que deus não existe?”. Há, claro, uma miríade de possibilidades de respostas algumas boas e outras não. Uma das respostas é “um ateu teria que mostrar o que acontece antes do Big Bang” isso é uma resposta inadequada, pois 1- deus não fez o Big Bang segundo a bíblia, ou pelo menos não do mesmo jeito que os cientistas reconstroem que ocorreu. Então a relação entre deus e o que vem antes do Big Bang é dúbia. 2- relacionado à anterior, um unicórnio mágico pode ter ocasionado o Big Bang e isso igualmente não é compatível com a suposição cristã da origem do mundo. Então a pergunta deve ser feita de novo e uma nova resposta deve ser procurada, talvez “se deus não existir, seres humanos não seriam especiais, a Terra não poderia ser chata, Adão e Eva não deveriam existir, almas não deveriam existir, etc.” Essa é uma pergunta muito pontual e de difícil resposta, porém acurada. Se nada disso for o caso, não há mais razão para se acreditar em deus. deus é um caso problemático, pois muitas pessoas não se dispõem a duvidar da existência dele, no entanto para qualquer ideologia como, por exemplo, o liberalismo há uma pergunta complexa desse tipo que determina quais os casos em que a ideologia estaria equivocada.
O caso acima é um começo e serve para se definir e tornar mais precisas nossas crenças. Após, ou durante, o processo de refinamento supracitado alguém interessado em ser um pensador crítico deveria rapidamente julgar toda a nova informação da seguinte forma: eu gostaria que isso fosse verdade? Se não, duvide; se sim, duvide ainda mais. Se uma notícia é muito de acordo com como você vê o mundo, muito conveniente, assuma que ela é falsa e procure mais informações. A razão para isso é simples: seres humanos têm um viés de confirmação muito intenso. Ou seja, tendemos a organizar coisas em padrões que justifiquem nossa forma de ver o mundo, ao invés de ver o mundo como determinam os padrões existentes. Isso nos leva a ver uma mesma história ideológica dando certo toda a vez mesmo quando há detalhes relevantes que derrotariam a análise. Que bom seria se as ideologias detivessem tantos planos com a fórmula correta de garantir a felicidade e a prosperidade das nações, quanto detém formas de contar as história que fazem parecer que elas têm.
Isso tudo nos leva a mais um ponto metodológico, para saber, deve-se ler, com honestidade e disposição para mudar de ideia, muito mais sobre o que se discorda do que sobre o que se concorda. Em outras palavras, se possível for, deve-se ler os argumentos oponentes até que não se tenha respostas para eles, e daí usar a falta de respostas como guia para ir nas pessoas com quem você concorda e ver como responder. E sobre assuntos que não se têm posição clara deve-se ler de tudo, na melhor proporção expandindo ao máximo a quantidade de perspectivas considerando um mesmo problema.
Chegamos ao final da nossa discussão e depois de tudo que se foi dito, podemos esboçar um “passo a passo” geral que expressa como ser um pensador crítico: Seja tão claro quanto possível com relação às implicações do que se acredita tanto para confirmar quanto para rejeitar qualquer afirmação. Aumente sempre sua fonte de informações e cruze tantos dados quanto possível procurando ser sempre consistente nas suas crenças. Duvide de tudo que se quer acreditar com duas vezes mais força do que se duvida de todo o resto. Tenha opiniões de força proporcional às evidências e, na dúvida, aceite a posição mais fraca.
Com isso tudo em mente, tente usar o método para aumentar a própria clareza e qualidade intelectual. Avaliar o mundo ao seu redor e, então, para agir sobre ele com o máximo de qualidade. No final das contas, ser um agente crítico só serve se o conhecimento extraído e processado for bem aplicado. Conto com todos na busca de um mundo mais esclarecido e mais justo.
Escrito e editado pelo Sr. Quirino