Josimar Ferreira
A Idade Média nos deu a Comédia, que continuamos lendo e que continua nos assombrando, que durará até depois de nossa vida, até muito depois de nossas vigílias, e que será enriquecida por todas as gerações de leitores.
(Jorge Luis Borges)
Retomadas e reelaborações dantescas
Séculos e séculos transcorreram, e os versos da Divina Comédia continuam vivendo e se renovando na memória dos homens, como uma máquina mitológica que se remonta no imaginário literário e no arsenal imagético de cada época. Paulo Gaiad, artista paulista contemporâneo, propôs uma versão imagética da Comédia se apropriando de imagens fotográficas e interferindo plasticamente com diferentes materiais para construção das três partes: Inferno, Purgatório, Paraíso. Ao compor suas imagens não busca uma releitura dantesca, ou uma cópia das gravuras de Gustave Doré, retoma e reelabora o arsenal imagético desse cânone literário, inventando sua série de imagens sem nunca ter lido o longo poema medieval, em um gesto semelhante ao de Pierre Menard diante do Quixote:
Aqueles que insinuaram que Menard dedicou a vida a escrever um Quixote contemporâneo, caluniam sua límpida memória. Ele não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca levou em conta uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo.[1]
Aos doze ou treze anos eu o li, talvez integralmente. Depois reli alguns capítulos, aqueles que por ora não tentarei escrever. […] Minha lembrança geral do Quixote, simplificada pelo esquecimento e pela indiferença, pode muito bem equivaler à imprecisão da imagem de um livro ainda não escrito.[2]
Paulo Gaiad conta que folheou uma edição antiga do Inferno, bastante atento às imagens do gravurista francês, lendo uma ou outra passagem apenas, que logo cuidou para sua memória esquecer. Jacques Derrida comenta em uma entrevista que preferir esquecer é apenas não preferir guardar.[3] O arquivista seleciona violentamente aquilo que pode vir a se repetir no futuro, é aquele que lida com rastros e vestígios, com restos e fissuras. O arquivo não trata só do passado, mas também do futuro, começa com uma seleção, e nesse sentido o artista é um arquivista que lida o tempo todo com essa terrível pulsão de arquivo, operando no campo das sobrevivências e metamorfoses. Gaiad, nesse ato menardiano, criou sua série da Comédia reelaborando um imaginário que vem assombrando e assolando o território das artes visuais ao longo dos tempos.
Paulo Gaiad – Imagens preparatórias para a série Divina Comédia (2012)
Fotografia sobre diversos materiais com intervenções do artista.
Inúmeros outros artistas de diferentes épocas retomaram e criaram imagens desse longo poema medieval. Giotto conversava com Dante, enquanto pintava as imagens da Capella degli Scrovegni. Sandro Botticcelli encantado com os versos do poeta, elaborou seus desenhos para uma edição da Comédia, ainda no Renascimento italiano. Em meio ao Romantismo francês Gustave Doré fez a ilustração que contém as imagens mais conhecidas pelos leitores de vários países. Dante Alighieri criou seu imaginário medieval do outro mundo com uma cartografia atravessada por sopros poéticos, detalhando os nove círculos do Inferno, os terraços do Purgatório e os céus concêntricos do Paraíso. E em cada verso, cada passagem, e cada momento seus personagens ficaram definidos para sempre, vivendo numa palavra e num ato, existindo na eternidade. Italo Calvino nos diz que “os clássicos são aqueles livros que conhecemos mesmo antes de ler, e que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa, deixando traços na cultura ou nas culturas que atravessaram”.[4]
Jorge Luis Borges, em um de seus ensaios dantescos, relata que um grande livro como a Divina Comédia “não é o capricho isolado ou casual de um indivíduo; muitos homens e muitas gerações convergiram para ele. Investigar seus precursores […] é indagar os movimentos, as sondagens, os vislumbres e as premonições do espírito humano”.[5] Tudo o que foi escrito e pensado antes de Dante sobre o outro mundo, sobre a travessia do reino dos mortos, ajudou a construir e tecer seu imaginário. Em outro texto, Borges supõe que cada escritor cria seus precursores, afirmando que cada “trabalho anterior modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro”.[6] Cabe a nós, leitores contemporâneos, pensarmos quais as metamorfoses, quais os desdobramentos que esse texto medieval produz ainda hoje, e que continuará reverberando.
Construções de um Cosmos
A viagem de Dante é o seu cammin di nostra vita (caminhar de nossa vida), é a porta pela qual todos nós entramos através de tempestades vertiginosas. Dante é guiado nos caminhos de errância pelo Inferno e Purgatório, por Virgílio, poeta romano que viveu antes de Cristo e não conheceu o batismo, sendo por isso um habitante do limbo, mas que se torna guia e mestre do poeta italiano a pedido de Beatriz. Chegando às portas do Paraíso, onde Virgílio não pode entrar, Dante passa a ser guiado por sua eterna amada e efêmera Beatriz, que no entanto logo desaparece diante do poeta, deixando-o sozinho nas últimas páginas. O único elemento que liga os versos, reúne os cantos, junta as três partes, é o próprio poeta enquanto personagem, constantemente presente. Do começo do Inferno até o fim do Paraíso, é Dante quem fala. Borges pondera que “a Comédia trata-se inquestionavelmente de um sonho de Dante, e este por sua vez, não é mais que o sujeito do sonho”.[7] E nesse sonho quis reencontrar sua inacessível Beatriz, (Beatrice Portinari), amor de sua vida, que morreu ainda jovem, deixando o poeta inconsolável.
Dante empregou o instrumento soberano da poética medieval: a alegoria. Atribuiu ao poema, vários sentidos alegóricos: um ético, um religioso, um político. Poeta essencialmente lírico, montou tempos diferentes e aproximou situações distantes: os grandes e pequenos criminosos de sua época, as sombras de personagens mitológicos e os heróis da antiguidade, foram transfigurados em habitantes imortais do Inferno; a moça florentina, Beatrice Portinari, em filha filosófica do Céu; o programa de um partido político desaparecido, em ideal político dos séculos: embaralhou a mitologia pagã e a cristã. O poeta pôs tudo na Comédia: seu amor, sua religião, sua erudição, sua paixão política, assim como Paulo Gaiad colocou suas experiências na própria obra. Dante escreveu ainda um outro livro, Vida Nova, de soneto e canções, menos conhecido e anterior à Comédia, tendo Beatriz como personagem central e símbolo de beatitude. Sua amada parece ter sido a grande busca dantesca, peregrinação incessante e inatingível.
Otto Maria Carpeaux, em nota introdutória da tradução brasileira, relata que Dante escreveu a Comédia, e os leitores mais tarde divinizaram a obra. O título do poema corresponde a uma estética desaparecida: a comédia, ao contrário da tragédia, seria um poema que começa por coisas mais penosas para terminar em felicidade, assim como a história sacra da humanidade começa com o pecado original e termina com a redenção. O Inferno seria um reflexo satírico e trágico do mundo real e por isso acessível à nossa sensibilidade, o Purgatório seria, apenas uma repetição mais fraca do Inferno, e o Paraíso, enfim, uma abstração, teologia escolástica em versos. Dante é construtor de um Cosmos.
O Inferno para Dante parece ser a paisagem real dos pecados humanos, e como a força da imaginação tem limites, essa paisagem de montanhas, desfiladeiros, rios e florestas subterrâneas é como um espelho da nossa paisagem mundana. Na construção do Paraíso o poeta se dá maior liberdade de abstração, mas o Céu de Dante não é uma fantasia arbitrária de um sonhador, é um edifício construído segundo as normas sólidas da lógica escolástica, repleto de elementos de uma doutrina religiosa coerente e de uma doutrina política bem elaborada, e com uma abstração suprema. O poeta nos apresenta paisagens imaginárias e no entanto inesquecíveis, alguns desfiladeiros terríveis que nunca existiram, passaram a habitar a imaginação dos homens para sempre. Borges, em uma conferência sobre a obra de Dante, retoma Coleridge lembrando que a vida de quase toda literatura do passado depende de nossa capacidade de realizar “a suspensão temporária da incredutibilidade”.[8] Devemos nos abandonar diante da Comédia com a fé poética.
Fabulações menardianas de Paulo Gaiad
Nas imagens de Paulo Gaiad nos deslocamos entre os três cenários dantescos: Inferno, Purgatório e Paraíso. Os corpos retratados em sua obra, nos convidam a percorrer os desvios de seus caminhos. A imagem corpórea é uma forma recorrente nos três espaços criados; os corpos empreendem esse trajeto entre os subsolos infernais e a ascensão paradisíaca, a guerra e o erotismo, a dor e o desejo. Giorgio Agamben sugere que somos guiados por nossos desejos e afetos, “com os desejos realizados, ele [o Messias] constrói o inferno, com as imagens irrealizáveis, o limbo. E com o desejo imaginado, com a palavra pura, a bem-aventurança do paraíso”.[9] Na efemeridade das imagens de Gaiad, o corpo nos guia a um percurso de errâncias e seduções.
Infernos
Imagens de guerra e violência, fotografias apropriadas que são envolvidas por arame e perfuradas por pregos, assim Gaiad constrói seu Inferno. Essas imagens são potencializadas por intervenções com objetos cortantes e metálicos em sua superfície. O corpo é violado, amarrado, perfurado, velado, mutilado e rasgado. As imagens, nessa parte da série, sofrem e agonizam diante de uma realidade grotesca. Georges Didi-Huberman salienta que nas labaredas do Inferno dantesco, na glória miserável dos condenados, “a grande luz não resplandece, nem a grande claridade das alegrias celestiais bem merecidas, mas o fraco lampejo doloroso dos erros que se arrastam sob uma acusação e castigo sem fim”.[10]
Paulo Gaiad – Imagens doInferno, parte da série Divina Comédia (2003-2007)
Fotografia sobre papel jornal com intervenções do artista
O inferno dantesco é dividido entre seus nove círculos decrescentes, dentre eles os de violência e bestialidade, cuja topografia é devastada e medonha. Na série de Gaiad não temos os círculos dantescos nem a cópia da representação medieval, pois o artista criou sua série sem ter a prévia experiência da leitura do poema. Percorremos o caminho de imagens que agonizam para outras que parecem apenas aguardar seus julgamentos, como em Dante, onde uma fenda aberta na rocha pelas águas do rio de Letes comunica o fundo do Inferno com a base do Purgatório.
Purgatórios
Composto por uma coleção de fotografias pertencentes a uma família desconhecida, adquiridas em uma feira de antiguidades, o artista inventa seu Purgatório. São imagens que parecem dotadas de poucas ou fracas paixões, de olhares apáticos, céticos, calmos e contemplativos que nos são dirigidos pelos anônimos retratados. Entre as imagens domésticas e comuns, os corpos do Purgatório são banais e ordinários como os suportes de papelão sobre os quais estão afixados. São corpos sem tanta emoção, nem desejos, que parecem apenas aguardarem seus destinos. Walter Benjamin assinala que cada momento vivido, sem distinguir grandes e pequenos, transforma-se numa “‘citação na ordem do dia’ – e esse dia é justamente o do juízo final”.[11] Ao que Agamben, a partir dessa leitura, vai acrescentar que a fotografia é para ele, de algum modo, o lugar do juízo universal. O que aparece na fotografia representa o mundo assim como o que é convocado ao último dia, o dia da cólera.
Paulo Gaiad – Imagens do Purgatório, parte da série Divina Comédia, (2003-2007)
Fotografia sobre papelão
Na série de imagens do Purgatório de Gaiad podemos perceber essas reverberações e ressonâncias das palavras de Agamben: “a multidão de homens – aliás, a humanidade inteira – está presente, mas não se vê, pois o juízo refere-se a uma só pessoa, a uma só vida: exatamente àquela e não outra”.[12] Alguns gestos ordinários são apreendidos e imortalizados na banalidade cotidiana pela imagem fotográfica, como na escolha do artista por imagens de pessoas desconhecidas, retratadas em atos corriqueiros e em atitudes irrelevantes para compor seu purgatório, mas que resumem em si o sentido de toda uma existência, carregando o peso de uma vida inteira. O filósofo italiano propõe ainda, que “a fotografia exige que recordemos, as fotos são testemunhos de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias”.[13] Jamais saberemos os nomes desses retratados no Purgatório de Gaiad, mas essas imagens não deixam de nos inquietar, de nos olhar e de nos lançar, quem sabe, um último apelo.
Paraísos
Constituído por imagens de um livro de fotografias eróticas do século XIX, colocadas sobre chapa de gesso, quebradas, novamente reparadas e então lixadas adquirindo uma aparência desgastada e rasurada, o artista tece seu Paraíso. O corpo goza, sorri, toca e é tocado, é tomado, nessa última parte da série, por uma forte carga erótica. Entretanto as imagens do Paraíso são fragmentárias, parte do corpo é sempre obliterada, velada. São imagens de lampejos, de instantes inapreensíveis, como é o próprio gozo, a própria paixão. Também o gesso quebrado parece servir um pouco como materialização desta fragilidade do ambiente paradisíaco.
Borges, em seus ensaios, supõe que Dante talvez tenha edificado o melhor livro produzido pela literatura para intercalar alguns encontros com a irrecuperável Beatriz, “os círculos do castigo e do Purgatório austral e os nove círculos concêntricos e Francesca e a sereia e o Grifo e Bertrand Born são intercalações; um sorriso e uma voz, que ele sabe perdidos, são o que importa”.[14] No Paraíso, o poeta conseguiu tornar visível o invisível, dizível o inefável. Beatriz parece ser o que existe de mais fugaz, de mais frágil e inacessível, uma presença que escapa. Gaiad criou imagens paradisíacas, eróticas e desejantes, mas que também são instantes efêmeros e irrepetíveis.
Paulo Gaiad – Imagens do Paraíso, parte da série Divina Comédia, (2003-2007)
Fotografia sobre placas de gesso
Se o Inferno de Gaiad parece dotado de um peso histórico e de situações de violência como são as guerras, e o Purgatório tem esse ar de esquecimento, o Paraíso parece particular e íntimo e, nesse sentido, quase impenetrável. As imagens do artista, nas três séries, possuem um aspecto fantasmático e envelhecido, fronteiriço entre o limiar da memória e do esquecimento, parecem trazer uma aura quase perdida ou o espectro de um fantasma que retorna. Jeanne Marie Gagnebin assinala que algumas imagens vivem uma estreita tensão entre presença e ausência; algumas imagens guardam a “presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também a presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente”.[15] Essa é a riqueza da memória, mas também a fragilidade de seus rastros.
As imagens escolhidas, por Paulo Gaiad, para sua série, guardam seus vestígios nos ecos do imaginário medieval, mas trata-se de uma invenção contemporânea, com toda a liberdade menardiana, diante desse cânone literário que não cessa de se reelaborare de se desdobrar para além de nossos sonhos e de nossas vigílias. Os episódios dantescos são imagens gravadas na memória da humanidade. A Divina Comédia é uma obra que ainda vive.
[1] Borges, Jorge Luis. Pierre Menard, autor de Quixote. In: Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 38.
[2] Idem, p. 41.
[3] Derrida, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: UFSC, 2012, p. 132.
[4] Calvino, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 11.
[5] Borges, Jorge Luis. Nove ensaios dantescos & A memória de Shakespeare. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 44.
[6] Borges, Jorge Luis. Kafka e seus Precursores. In: Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 130.
[7] Borges, Jorge Luis. A Divina Comédia. In: Borges oral & Sete noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 18.
[8] Idem, p. 89.
[9] Agamben, Giorgio. A Comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993, p. 14.
[10] Didi-Huberman, Georges. Infernos? In: Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 13.
[11] Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, v. I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223.
[12] Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 23.
[13] Idem, p. 26.
[14] Borges, Jorge Luis. A Divina Comédia, op. cit., p. 89.
[15] Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar esquecer escrever. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 44.
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