por Thadeu N. Almeida
A boa vida é aquela da constante busca. Ou da inconstância do desejo não realizado. Mario é um proeminente clarinetista e quer entrar pra Orquestra Filarmônica. Teresa é descompassada, xinga o ex-marido, mas no fundo tudo o que quer é tê-lo de volta. E a terceira história, ou a não-história, é a de Edmundo, que quer comprar um carro e procura crédito. Cada núcleo desses três agrega uma série de outros personagens, que compõem o pano de fundo: a cidade de Santiago. Tal qual a trilogia de Arriaga e Iñarritu – Amores Brutos, 21 Gramas e Babel – tais divisões escancaram uma realidade múltipla: numa megalópole como essa, as vidas se tocam sutilmente, as histórias se entrecruzam.
Entretanto, uma boa distância se cria nas propostas: se na trilogia mexicana, as divisões se dão para vias de complementação, de forma intrínseca, uma ação de um bloco desencadeando uma resposta em outro, sendo uma seqüência de eventos ilustrativa de uma mesma idéia, quase como num jogo virtuoso de dividir as histórias para se mostrar a desenvoltura que se tem ao passar de uma à outra; eis aqui um aparte significativo: no longa-metragem do chileno Andrés Wood a idéia de simultaneidade, por vezes exaustiva no cinema contemporâneo, é simplesmente a imitação da vida. Algo acontece aqui, enquanto algo se desenrola por lá. Cada qual no seu galho. O corvo voou enquanto um cachorro sentou-se em seu rabo. Existe ligação entre ambos? Possivelmente não, e tentar juntá-los distorceria o significado.
A montagem preconizada por Eisenstein que deu todo o aporte para as justaposições em geral, tornou o espectador uma máquina de síntese, pois tudo se torna inteligível, se forem recolhidos os signos pelos diversos caminhos que a história trilha. Em La Buena Vida, o espectador mais atento, vê-se numa constante busca, esperando o momento em que tais personagens habitarão a mesma tela, para assim extrair a significação de tão díspares situações. Fato é que isso não acontece, ou melhor dizendo, não acontece de forma significativa.
O bloco do clarinetista, Mario, se liga ao de Teresa por uma simples coincidência: esta, em determinada seqüência, ao ver uma mulher se aproximando de seu carro, pisa no acelerador e sequer a olha; algum tempo depois Mario encontra a mesma mulher morta no chão. Mais significativo, porém, é a junção que se tem com o terceiro bloco. Mario e Edmundo, em determinada seqüência, estão em um mesmo transporte coletivo, quando uma senhora é assaltada. Mario está fardado, e mesmo se tratando apenas de um músico da orquestra do Exército, é forçado pelas pessoas em volta a ir atrás do ladrão. Desce correndo do ônibus e larga o clarinete. Edmundo o recolhe. O instrumento para Mario é a sua vida, e para Edmundo qualquer dinheiro é a possibilidade de conseguir seu carro a crédito. Nuances à parte, o clarinete retorna a Mario devido a uma guinada no comportamento de Edmundo. Trata-se da única intervenção de um bloco em outro, sendo que a mesma situação se traduz em cada segmento com um viés diferente. Não há uma troca, há apenas ações que de alguma forma afetam duas pessoas diferentes.
Já disse que se trata de não-histórias, e tratarei de explicar. Paula, filha de Teresa, escreve um livro que empresta o nome ao filme, e ao ser perguntada pela mãe sobre a trama, argumenta que seu livro não contém histórias, apenas vidas. É como se Andrés Wood colocasse na boca de Paula seu real intuito nesta película. Há uma contradição nisso? Certamente, porém a película se acerca desta neutralidade e se esquece de um fato: conflito dado, história feita.
Brincando com dúvidas, vos pergunto: ao final, é dito que o filme se baseia em fatos reais. Até que ponto isso muda alguma coisa? Acresce uma credibilidade maior ao recorte que Wood faz? Seria possível uma cópia da vida tal como Andrés Wood parece sugerir?
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